Natureza: sujeito de direitos ou valor de mercado?

Na 16ª edição da Conferência Ambiental sobre Biodiversidade, a COP16, realizada em Cali, Colômbia, no fim de outubro de 2024, participam mais de 11 mil pessoas. A Igreja também marca presença, de forma organizada, com representações internacionais e na perspectiva de um itinerário que culmina na COP30, no Brasil.

Um dos temas mais debatidos na Zona Verde da Conferência, que reúne diversas expressões da sociedade civil, são os direitos da natureza. O Sínodo dos Bispos para a Amazônia, cinco anos antes, afirmou que as comunidades amazônicas são protagonistas no cuidado, na proteção e na defesa dos direitos dos povos e dos direitos da natureza (Documento Final do Sínodo, n. 74). O Sínodo também destacou que a educação em ecologia integral deve respeitar os direitos da natureza (n. 84). 

Na Zona Azul da COP16, o espaço institucional reservado para mais de 190 representações oficiais de diferentes países, os debates tratam, porém, da financeirização da natureza. Ou seja, discutem a transformação de elementos naturais, como florestas, água, biodiversidade e carbono, em ativos financeiros que podem ser negociados em mercados, com o objetivo de gerar lucro e, supostamente, benefícios para as populações mais pobres.

A pergunta que surge, portanto, é “Os direitos da natureza são compatíveis com a valoração mercantil da biodiversidade?”.

O valor de algo vai além de seu preço: como é possível definir o preço de uma vida? Diante da morte e da devastação, esses cálculos perdem o sentido. Logo antes do início da COP16, as comunidades cristãs latino-americanas foram impactadas pela notícia do assassinato de Juan Lopes, ministro da Palavra da Igreja Católica em Honduras, defensor de seu território e da montanha sagrada “Carlos Escalera”, dedicada à vida de outra vítima da violência ambiental. Uma semana depois, o Pe. Marcelo Pérez, sacerdote indígena maia Tsotsil, foi morto por sua defesa dos direitos indígenas e da natureza. Silenciamos, com dor e profundo respeito, diante dessas vidas doadas, que escancaram a violência de uma economia que mata e que, mesmo pagando, não pode devolver a vida a pessoas e territórios martirizados.

Defender que a natureza tem direitos significa reivindicar que ela seja reconhecida como sujeito e não mais como um objeto que armazena recursos para as necessidades humanas. A humanidade é chamada a se converter (utilizando uma linguagem bíblica) de uma relação de domínio para uma de cuidado, cultivo e reverência, numa atitude de interdependência.

Considerar a natureza como um sujeito provoca um repensar na democracia, como um espaço de expressão e debate sobre visões e projetos que se limitem não só aos humanos, mas que também deem voz e espaço às outras criaturas. Garantir os direitos da natureza, não acima, mas integrados aos direitos humanos, é um dos maiores desafios para a arquitetura política e jurídica do futuro próximo. O que já sabemos é que a afirmação dos direitos da natureza amedronta grandes corporações e Estados, pois esses enxergam o risco de responsabilização jurídica e penal em caso de violação desses direitos. 

O povo da mercadoria

Davi Yanomami distingue os povos indígenas dos “napepe”, estrangeiros e invasores, cuja cultura dominante é a da extração consumista, “fazendo de nós o povo da mercadoria”. Aprisionados pelo fetiche do consumo, “objetificamos a natureza e não conseguimos vê-la como uma fibra encadeada e conjunta que gera a vida”, como comentou a presidente da COP16, Susana Muhamad, ministra do Meio Ambiente da Colômbia. Em contrapartida, o povo Yanomami reconhece, nesse tecido da vida, os espíritos Xapiri, que brincam, sustentam as conexões da existência e as mantêm interligadas. 

O magistério cristão traduziu essas intuições de profunda espiritualidade no conceito do “bem comum”, um dos pilares da Doutrina Social da Igreja, que antepõe à propriedade privada o destino coletivo dos bens, para que toda a Criação tenha vida e vida em abundância (Jo 10,10). A perspectiva da fé nos faz crer que tudo o que temos recebemos de graça e, portanto, em cada momento de nossa existência, precisamos ter gratidão e reverência, contemplando a presença de Deus nos acontecimentos e nas criaturas. Essa visão se opõe radicalmente à precificação da vida e das relações, que devem permanecer um bem comum e não só à disposição de quem possui dinheiro.

Ao aceitar a lógica de atribuir preço a tudo o que existe, estaríamos reafirmando a histórica divisão do mundo entre donos e servidores, uma lógica neocolonial que hoje se repete, reconfigurada pelos novos lemas dos créditos de carbono, da economia verde e da “mineração sustentável”, um verdadeiro oximoro, comparável a “vida morta” ou “alegria triste”. Financeirizar a natureza é, portanto, cair na armadilha neocolonial.

Esse processo de neocolonização vem sendo justificado pela urgência de enfrentar o colapso ambiental e climático em que nos encontramos: a proposta é investir em novas soluções oferecidas pelos velhos sistemas que provocaram o problema. O modelo capitalista, que se baseia no extrativismo predatório desde os tempos coloniais, impõe agora novas formas de extrativismo para manter-se vivo e, supostamente, garantir uma transição econômica e ecológica que beneficiaria sobretudo a si próprio. 

Essa proposta já está dividindo muitas comunidades, mesmo aquelas que, desde sempre, defendem sua autonomia nos territórios e reivindicam liberdade e condições para manter seus modos de vida. No mês de outubro de 2024, pouco antes da COP16, mais de cem representantes indígenas de várias partes do mundo se reuniram em Genebra para negociar com o grande capital investimentos para uma “transição justa” e para a “economia verde”.

Quais caminhos precisamos propor e quais iniciativas reivindicar, então, para garantir que a natureza seja sujeito de direitos e não valor de mercado? Na COP16, os povos, movimentos sociais, defensores e defensoras da Amazônia, articulados no âmbito do Fórum Social Pan-Amazônico, entregaram à presidente da Conferência a Declaração dos Direitos da Amazônia, que será inclusa nas negociações de alto nível.

Para traduzir esses direitos no dia a dia da resistência das comunidades, é necessário proteger seus modos de vida e garantir acesso e permanência em seus territórios. Uma perspectiva decisiva é o financiamento climático, que também será discutido nas próximas conferências sobre clima, biodiversidade e combate à desertificação. Povos e comunidades precisam de ter acesso direto a esses recursos financeiros, para garantir, a partir de sua experiência e práticas, a diversificação e manutenção das economias locais. Imaginemos, por exemplo, processos de conservação, proteção e reflorestamento conduzidos localmente: essas seriam iniciativas potentes de geração de renda, distribuição de benefícios e garantia efetiva de cuidado, em relações integradas entre as comunidades e os territórios onde vivem.

Os direitos da natureza são uma das pautas que podem unificar as propostas dos povos originários, das comunidades tradicionais e do mundo urbano, sem depender das falsas soluções oferecidas por um sistema preocupado mais com sua sobrevivência do que com a da Mãe Terra e quem nela habita.

 

Dario Bossi

Religioso comboniano no Brasil. Após passar dez anos no Maranhão (Estado afetado por intensa mineração), está empenhado na defesa dos direitos ambientais dos povos. Atua na Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), na rede Igrejas e Mineração e na Comissão para a Ação Sociotransformadora da CNBB.

 

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