Estamos vivendo uma profunda mudança de época, como menciona o número 44 do Documento de Aparecida. São alterações tão profundas, tão globalizadas que afetam os critérios de compreender e julgar a própria realidade, em todos os sentidos. Entre as violações aos direitos humanos está o crime do tráfico de pessoas, que já se analisa como a terceira modalidade de crime mais lucrativa no mundo, ficando atrás apenas do tráfico de armas e drogas (no Estado do Pará, temos uma quarta modalidade criminosa, que é a grilagem de terra, ou melhor, a falsificação de documentos de terras públicas, passando-as para particulares). Por isso vamos falar do tráfico de pessoas que envolve a privação de liberdade, a exploração, a violência e, em muitos casos, finaliza com a morte, caso as vítimas se neguem cumprir as regras estabelecidas pelos aliciadores.
É muito difícil fiscalizar ou combater esse crime, devido à falta de leis claras de proteção às vítimas, principalmente na Amazônia brasileira, onde não há fiscalização nas longas distâncias geográficas. Na maioria dos casos, as vítimas são surpreendidas com ofertas espetaculares de sucesso e projeção na vida. No ano de 2000, foi aprovado o Protocolo contra o Crime Organizado Transnacional, Relativo ao Combate ao Contrabando de Migrantes por Vias Terrestre, Marítima e Aérea. Em 2003, o Protocolo entrou em vigor. Essa luta deve ser de todos para garantir a proteção dos direitos humanos, a liberdade, a dignidade e a vida. O Protocolo define bem, no artigo 3º, alínea “a”, o que é tráfico de pessoas:
A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
No Brasil, com grande pressão de entidades e da sociedade civil organizada, foi aprovada a Lei 13.344, de 6 de outubro de 2016, de prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas. No artigo 3º, define as diretrizes no enfrentamento ao tráfico de pessoas, que envolvem todas as categorias sociais, governamentais e não governamentais. Contudo, mesmo que haja uma legislação mais rígida, ainda estamos longe de abolir esse crime. No entanto, as diversas modalidades de tráfico de pessoas tornam sua atividade ilegal como uma das mais lucrativas do mundo. É um crime totalmente articulado e organizado nacional e internacionalmente. Na exploração sexual comercial, mulheres, travestis e crianças do sexo feminino são as principais vítimas.
Ao longo destes 30 anos em que vivo e cumpro minha missão como religioso missionário da Congregação do Verbo Divino e advogado em defesa da vida e das causas sociais na região do baixo Amazonas, no Oeste do Pará, nós nos deparamos com essa triste realidade. Existem várias rotas de tráfico, principalmente ao longo do rio Amazonas, tendo uma conexão em Manaus, Santarém, Belém, Ilha de Marajó, Macapá, Guiana Francesa, seguindo para Europa ou outros países. A Comissão de Justiça e Paz da CNBB, no Regional Norte II (Pará e Amapá), representada pela irmã Marie Henriqueta Cavalcante, tem atuado incansavelmente no combate ao tráfico de pessoas e em solidariedade e proteção das vítimas. Frequentemente, ela assessora as lideranças das dioceses de Óbidos, Santarém, Xingu e Prelazia de Itaituba. Um trabalho de prevenção e também análise de estratégias de risco, pois ela mesma e outras pessoas já foram ameaçadas. Por isso Ir. Henriqueta afirma:
Ao longo destes anos, o que venho percebendo, através do contato direto com a realidade na região da Amazônia, e em outras localidades do nosso país, é que precisamos avançar enquanto rede e sermos mais velozes para fazer acontecer a política de enfrentamento e de atendimento às vítimas desse crime.
O relatório da Comissão de Justiça e Paz (Pará e Amapá) de 2018 afirma que foram recebidas 5 denúncias de tráfico de pessoas e 398 casos de exploração sexual. A valorização das ações de prevenção no enfrentamento ao tráfico de pessoas é a grande mudança que os atores brasileiros devem reconhecer, priorizando as pessoas mais vulneráveis, atingindo e protegendo para que não caiam nas redes de traficantes. É importante a implantação de políticas públicas e políticas sociais para que o ser humano tenha a sua dignidade respeitada, evitando, assim, o sofrimento humano, e os colocando como indivíduos de direitos e merecedores de igualdade e respeito. Os direitos humanos têm um papel fundamental na orientação de programas, ações e de medidas de prevenção ao combate ao tráfico de pessoas, protegendo e reparando as vítimas.
Veja mais
Quem são essas mulheres? – a relação entre grandes projetos e a exploração sexual na Amazônia
Padre José Boeing é missionário do Verbo Divino, advogado, mestre em Direito Ambiental e, há três décadas, atua no Estado do Pará.