“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no
meio deles” (Mt 18,20)
O evangelho deste domingo faz parte do chamado “discurso comunitário”,
onde Mateus recolhe os ensinamentos de Jesus a respeito das “relações oblativas”
que devem reinar em sua comunidade.
De fato, em seu ministério público, Jesus não só se revela como o
“fundamento” da comunidade dos seus discípulos, mas ativa aqueles “atributos”
que são essenciais para alimentar os vínculos entre aqueles(as) que o seguem:
“tornar-se como criança”, “não ser pedra de tropeço para os pequenos”, “cuidado
com a ovelha que se perde”, “a vivência do perdão”, “a correção fraterna”, “a
oração em comum”…
Profundo conhecedor da condição humana, Jesus tinha plena consciência
que o ser humano é frágil, limitado, e que nenhuma comunidade subsiste sem uma
contínua atitude de abertura e de acolhida do “outro”.
Sabemos por experiência que a presença do outro (“alter” em latim) sempre
nos “altera”.
O ser humano é incapaz de amadurecer em solidão. Desde nosso nascimento,
viemos ao mundo em um estado de fragilidade que faria morrer muitos animais;
por isso, precisamos uns dos outros. Fomos concebidos dentro de uma matriz de
relações e vivemos sempre em um mundo densamente povoado de surpreendentes
presenças humanas, que são imprescindíveis para chegarmos a ser “pessoas”.
As relações interpessoais são fundamentais em nossa vida. Portanto, somos
chamados a acolher os outros, reconhecer sua dignidade, sentir-nos responsáveis
por eles, assumir a alteridade como princípio e lugar de crescimento e de formação
pessoal…
O Evangelho de hoje aponta para esta realidade: nós nos constituímos como
“humanos” pelas nossas relações; em outras palavras, só nas relações com os
outros podemos crescer em humanidade.
Estamos sempre em contato com o “outro”. E o outro é pessoa. O outro
revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático. O outro é plural,
apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito…
Só seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos
aceita… respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos
permite tomar consciência de nós mesmos.
Essa identidade se revela por meio das relações: ninguém cresce sozinho,
precisamos dos outros; precisamos viver relações sadias e maduras com os outros
(família, amigos, trabalho, grupos, comunidades…).
Nesse sentido, uma pessoa encontra somente sua realização na interação
com o ambiente que a cerca.
O ser humano está comprometido com os outros; por sua própria natureza,
ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui
impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à
comunhão…; ele é reserva de humanidade e compromete-se com a dignidade
humana.
O ser humano é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em
referência a outras pessoas: estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se
com eles, e forma um nós: a comunidade.
Mas, o “discurso comunitário” em Mateus nos adverte que não podemos
partir de uma comunidade de “perfeitos”, mas de uma “comunidade de irmãos”
que reconhecem suas limitações, fragilidades… e necessitam do apoio mútuo para
superar as dificuldades e reforçar os laços internos.
“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu…”
Esta expressão fora dita, anteriormente a Pedro (cf. Mt 16,19), como presença de
unidade e comunhão da comunidade. Agora Mateus expõe que a graça (e o dever)
de perdoar é concedido a toda a comunidade, a cada membro.
Ninguém fica excluído da busca de diálogo ou de soluções diante de um conflito. É de todos a
responsabilidade da marcha comunitária e do bem comum. A todos lhes é exigido
uma maturidade que vai sendo alcançada, pouco a pouco. Para isso, a correção
fraterna e o acompanhamento mútuo se fazem indispensáveis.
A comunidade é a última instância de nossas relações com Deus e com os
demais. O Evangelho de hoje insiste que é preciso esgotar todos os recursos para
ajudar o outro a sair de seu erro. Qualquer pessoa que, sem saber, vai pelo
caminho equivocado, agradeceria se alguém lhe indicasse, com amor, seu erro e
lhe mostrasse o verdadeiro caminho.
Se ao fazer hoje a correção fraterna, damos
por suposto que o outro tem má vontade, será impossível que ele aceite a
retificação. A partir dessa perspectiva estamos dando por suposto que nós somos
bons e o outro é mau.
A correção fraterna é um sinal de grandeza e delicado amor; começa com a
correção a sós; caso não tenha resultado, chamar outros dois ou três e, se for
preciso, recorrer à comunidade.
Numa comunidade cristã todos devemos ser acolhidos com nossas limitações
e capacidades, com nossos erros e acertos; a comunidade cristã, se é comunidade e
se é cristã, não é espaço de acusação e julgamento quando nos equivocamos; nela
somos absolvidos quando somos culpados, somos buscados quando nos perdemos,
somos perdoados quando erramos.
A correção fraterna não é condenar, ou castigar, ou expulsar, mas desvelar
as limitações, sem ódio, sem espírito de crítica, de vingança, sem rancor. O objeto
da correção fraterna não é dizer que eu tenho razão e que o outro está equivocado
e, por isso, é mal. O objeto da correção não é sancionar para servir de lição. O
objeto da correção fraterna é “ganhar” o irmão.
É no horizonte do amor que a correção fraterna acontece e não no horizonte
da lei. O amor e a caridade são muito superiores a uma justiça entendida a partir
de uma mera aplicação da lei corretiva.
É muito difícil cumprir hoje esse encargo da correção fraterna porque ela
está pensada para uma comunidade, e o que hoje mais falta é precisamente o
sentido de “comunidade”. O sentido da relação, sadia e amorosa, com os outros é um dom de Deus,
que nos foi dado a todos. Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a
comunhão…
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de
Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Como criaturas, fomos atingidos pela marca
trinitária de Deus. Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre
nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade.
“Se nos amarmos uns aos outros,
Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo 4,12).
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em
direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade…
Deus é o ponto focal para enxergarmos o outro. Se há “eu” e se há “tu”,
então a presença de Deus se revela.
A fraternidade, a vida em comum se medem pelo amor, por atos e gestos
de doação, de perdão, por vivências de comunhão, por experiências de partilha do
mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua…
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteressados,
tão profundos, que só desejamos que o outro seja único e original, na sua
verdadeira identidade. O autêntico seguimento de Jesus, portanto, significa que a qualidade da
comunidade possibilita encontros cheios de graça.
As duas realidades – pessoa e comunidade – se condicionam e se
complementam. “A pessoa faz a comunidade e a comunidade faz a pessoa.”
Texto bíblico: Mt 18,15-20
Na oração: não podemos esquecer que cada um de nós é um “outro” para os
outros. E poderíamos nos perguntar que espécie de “outro” temos sido para os
outros.
- Ser “outro” é mandamento, é apelo à responsabilidade, à ajuda mútua, ao
perdão reconstrutor…
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).