“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos”
(Lucas 14,1.7-14)
Jesus é um profundo conhecedor da interioridade humana. Sabe que ali dois dinamismos estão em contínuo conflito: de um lado, o ego farisaico, que aproveita todas as ocasiões para brilhar diante dos outros (cultura da aparência), ser o centro, chamar a atenção sobre si…; do outro, o eu profundo, sábio que, na sua liberdade e espontaneidade, deixa transparecer sua luz no encontro com o diferente.
As imagens e as palavras de Jesus no evangelho deste domingo são tremendas. A motivação daqueles que buscam ocupar os “primeiros lugares” é expressão de uma interioridade vazia e estéril; ela é reveladora de uma das necessidades características do ego, que busca “aparecer” diante dos outros, como um modo de autoafirmar-se, de se sentir superior aos outros, humilhando-os e desprezando-os.
Quando uma pessoa é escrava de seu próprio ego, não lhe importa que o outro desapareça ou se sinta marginalizado e privado de seus direitos. Vive tão a fundo sua “autoidolatria” que até lhe parece normal continuar agindo assim.
A pessoa sábia, no entanto, compreende que tudo o que os outros pensam ou digam a respeito dela não lhe acrescenta nem lhe tira nada de seu valor. Ela não se move a partir da necessidade de agradar ou de “ficar bem” diante dos outros. Vive, simplesmente, na coerência com o que é mais verdadeiro em seu interior, onde o ego não tem predomínio. Da mesma maneira que não busca reconhecimentos nem bajulações, tampouco lhe interessa perseguir os primeiros lugares. Vive com liberdade interior, a partir de sua própria consciência de plenitude. Flui em cada momento com o que é em sua essência; fluidez que brota da compreensão de si mesma, aquela que lhe faz consciente de sua “irmandade” com todos os humanos e todos os seres.
Portanto, o sábio não atende aos necessitados – “pobres, aleijados, coxos e cegos” – para receber uma “retribuição” futura, senão porque sabe que são de sua mesma “família”. O comportamento dele – como foi do próprio Jesus – se caracteriza pela gratuidade. Não busca alimentar o interesse egoico, porque não se deixa determinar pela carência. Sua ação é fim em si mesma, porque nasce de uma consciência de plenitude que se transborda.
O evangelho deste domingo nos convida a estar com Jesus numa refeição, em casa de um dos chefes dos fariseus. Ele era consciente de que muitos desse grupo religioso estavam contrariados com sua forma de proceder e vigiavam seu modo de falar e agir. Por isso, ali, nessa refeição, Jesus não se sentia à vontade, pois faltava a presença de seus amigos prediletos: os pobres, aleijados, coxos, cegos…
A conduta dos convidados e do chefe fariseu são, para Jesus, uma ocasião privilegiada para propor os valores do Reino. Para Ele, no banquete da vida, não basta dar e receber generosamente, mas acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual todos têm lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.
O relato deste dia não só recorda o modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, na qual se respeitem as diferenças, se construam espaços de igualdade, onde se proclame um Deus gratuito e cheio de amor e perdão. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida… Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós. Multiplica-se, triplicam-se os cestos de pão.
Na mesa, “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa, significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus, e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários. A presença provocante do encontro com o outro desperta em nós o “dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos o mesmo sonho, a mesma missão… Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida do Mistério revelado na mística da mesa.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
Podemos ler o evangelho deste domingo também em chave de interioridade: no nosso eu mais profundo, há uma mesa pronta para a refeição; geralmente é o “fariseu” que nos habita o controlador desta mesa; é o nosso ego inflado, perfeccionista, legalista, dominador que não admite a presença de nossos pobres, aleijados, coxos, cegos, enfim, todas as dimensões de nossa vida que foram excluídas, reprimidas e marginalizadas. O evangelho nos revela que, em nossa interioridade, há muitas vivências, experiências, feridas, fragilidades, fracassos, crises… que não foram acolhidas nem integradas, e que clamam por um lugar à mesa do coração; “multidões” nos habitam e querem compartilhar a mesa da vida.
O nosso fariseu interior também convida Jesus para participar da sua ceia; e Jesus é aquele que acolhe o convite, mas não se sente bem à mesa do fariseu, pois nota a falta dos seus amigos pobres. Ele tem liberdade de transitar pelo nosso interior e de acolher tudo o que foi reprimido e excluído. São justamente nossas feridas as portas e janelas abertas por onde entra a mensagem inovadora de Jesus. O “fariseu” já está formatado, petrificado, refratário à proposta de vida apresentada por Jesus.
Também a gratuidade só pode ser vivida quando a identificação com o nosso ego cai. Então, emerge uma nova consciência que se revela no acolhimento de nós mesmos, no deslocar-nos entre os “últimos”, no sentir-nos em comunhão com aquelas dimensões da vida que são excluídas e que não têm nada a retribuir, a não ser sua própria fragilidade. Mas, sabemos pela revelação bíblica, que Deus tem mais facilidade de “entrar” em nossas vidas pelas fendas das feridas, dos fracassos, das derrotas…
“Os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” sou eu mesmo, sou o outro eu que se desvela no encontro com tantos “eus” diferentes. Aqui descubro a bem-aventurança como minha verdadeira identidade, ou seja, aquela na qual tudo está interligado, como numa imensa rede, onde nada é descartado.
Justamente os aspectos pobres e aleijados, os aspectos cegos e coxos podem me levar ao caminho da completude. Tudo, e principalmente aquilo que eu considero feio em mim mesmo, deve ser incluído e acolhido na completude com Deus. Posso tornar-me completo em Deus apenas se eu lhe oferecer minhas fraquezas, feridas e fracassos… A “descida” à minha mesa interior vai, aos poucos, despertando uma sensibilidade para também “descer” ao mundo do outro; o encontro com minha própria humanidade ativa um deslocamento em direção à humanidade do outro.
Aquele(a) que “desce” às margens de sua interioridade também se aproxima da terra privilegiada do encontro com Deus, que se manifestou em Jesus de Nazaré, o amigo dos pobres e pecadores.
Textos bíblicos: Lc 14,1.7-14
Na oração: é no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor.
– Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, onde uma multidão de “pobres, coxos, paralíticos, cegos” deseja ser iluminada pela vida daquele que “armou sua tenda entre nós”.
– Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos…, onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça. Viva a gratuidade na mesa da vida!
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).