A expressão é da irmã Madalena Hoffmann, missionária serva do Espírito Santo (SSpS) e membro do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) do Município de Alto Alegre, Roraima. Presente na Assembleia do Regional Norte 1 do Cimi, realizada de 11 a 14 de fevereiro, Ir. Madalena, que atua também na Pastoral Paroquial, com foco na pastoral indigenista, afirmou que terra, território e água serão o foco principal das atividades do Cimi, no Regional. Entre outras prioridades igualmente importantes, está a atuação, em rede, na região do rio Abacaxis, para garantir direitos; o apoio ao povo Yanomami em suas terras invadidas pelos garimpeiros e demais áreas; e as ações de proteção aos povos indígenas livres.
O Cimi se propõe também a avançar na articulação e incidência política, e a fortalecer a aliança com outras entidades (entre elas, a Comissão Pastoral da Terra, universidades, Sares, Repam) que atuam no campo da luta contra a mineração e grandes empreendimentos em terras indígenas (BR-319, Bacia Sedimentar do Solimões)e promover estratégias de diálogo com o governo atual.
Irmã Madalena falou ainda sobre a atuação do governo atual na proteção e cuidado dos Yanomami e sobre os desafios que os indígenas enfrentam para viver no mundo urbano. Veja a íntegra da entrevista.
A Assembleia teve como tema “Cimi: 50 anos de existência, reafirmando a caminhada na mística, memória, resistência e esperança” e, como lema, “E diga ao povo que avance! Avançaremos!”. Por que esse tema e esse lema? O que eles querem dizer nas entrelinhas para a Igreja, a sociedade e os povos originários?
Irmã Madalena: Diante de uma realidade vivida no País, onde era negado aos povos a vivência e o cultivo de seus costumes, crenças, saberes e tradições, pode-se dizer, com certeza e esperança, que o nascimento e a organização do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) foi o acontecimento por excelência, tanto na vida eclesial quanto na vida dos próprios povos originários. Aqui na Amazônia, se ainda existe preservação da natureza, floresta em pé, é inegável que isso se dá graças à luta, resistência, teimosia e valentia dos povos originários e de tantos missionários e tantas missionárias que, ao longo desses 50 anos, dedicaram-se incansavelmente a essa grande missão de estar junto a esses guerreiros e guerreiras, somando forças, enfrentando perigos. Muitos, até com seu próprio sangue, testemunharam essa paixão pela causa indígena, que é de todos nós. Portanto, voltar atrás, jamais! Avançar, sempre! Diga ao povo que avance! Avançaremos!
Como a senhora avalia a atuação do atual governo ante a tragédia que se instaurou no mundo Yanomami?
Irmã Madalena: É como um oásis no deserto! Um ressurgir da vida e da esperança no meio de tanto descaso praticado pelo governo anterior. Onde podemos dizer e repetir com toda a certeza: nunca mais um Brasil sem os povos originários! No momento, o governo foca no cuidado com os povos originários onde a vida está mais ameaçada, o que parece justo. Mas a Amazônia, como um todo, clama por atenção. O grande desafio do atual governo, em relação à Amazônia, é não ter medo de enfrentar os monstros que sempre sugaram as riquezas naturais às custas de tantas vidas machucadas, marginalizadas, ameaçadas e pisoteadas por esse sistema que gera morte, em nome de um falso progresso e desenvolvimento. Sabemos que não será uma tarefa simples e vai exigir do governo um pulso firme e destemido. E vai precisar, mais do que nunca, de uma sociedade civil organizada e forte, através dos movimentos sociais, igrejas e tantas outras instituições promotoras do bem viver.
Os povos indígenas livres precisam de proteção, e essa é uma das prioridades abraçadas pelo Cimi na Assembleia do Regional Norte 1, que acabou de acontecer. Na prática, quais são as reais ameaças à vida dos povos indígenas livres?
Irmã Madalena: Os povos livres sofrem constantemente o assédio de pessoas; e pasme, muitas vezes, pessoas religiosas das igrejas pentecostais. Recordemos que, durante o desgoverno passado, inúmeras vezes, pastores, “gente do bem e de Deus…”, em nome de uma fé esvaziada, entravam nos espaços dos povos, os quais eles chamavam de isolados, cuja alma tentavam salvar. Também a Igreja Católica teve atitude semelhante durante a primeira colonização. Mas, por trás dessa “boa” intenção, vieram também grandes interesses pelas riquezas naturais das florestas. Com isso, entram as doenças, os vícios dos brancos, o aliciamento de pessoas. Isso continua muito forte nos dias de hoje. O Cimi tem o projeto de trabalhar essas questões nos lugares onde já houve ou está havendo esses estragos, para que, justamente, possam existir mecanismos de proteção e denúncia dessas situações.
Poderia falar sobre os principais desafios que os indígenas que vivem em contexto urbano, como os Yawaripë/Yanomami, enfrentam? Que tipo de acompanhamento seria eficaz?
Irmã Madalena: Em relação aos povos da cidade, falando da situação concreta de Boa Vista, com a invasão dos garimpeiros, muitos foram aliciados através de “migalhas” a irem para a cidade. Ao chegar, sofrem as piores e atrozes consequências. Por exemplo, não têm onde ficar, ficam muito doentes, são atropelados e mortos pelas ruas de Boa Vista, são tidos como indigentes e assim são sepultados. Os filhos de quem morre se negam a voltar para o território, pois dizem “A mãe morreu aqui, e aqui eu quero morrer também”. Já existe uma equipe em Boa Vista acompanhando essas situações. É uma realidade também do Amazonas. Por isso, foi acrescentada como uma forte prioridade essa questão.
Há algum desafio em ser mulher, missionária nessa luta? E alegrias?
Irmã Madalena: Muitos desafios, mas muito mais alegrias, mesmo em tempos sombrios que passamos, pois só o fato de saber que estamos do lado da vida, especialmente lá onde ela é mais ameaçada, já é motivo de nos alegrarmos por nos sentirmos no lado certo. O misto de desafios e alegrias na vida missionária é o que nos impulsiona a avançar sempre nessa caminhada.
Poderia falar um pouco sobre a atuação da mulher e mulher consagrada no Conselho Indigenista? O que faz a diferença com a presença delas?
Irmã Madalena: Na verdade, nós, mulheres consagradas ou não, somos de especial relevância no Cimi, pois, nos mais diversos serviços e ações desenvolvidos na prática missionária, o toque da mulher dá um tom especial. Mas também é importante ressaltar que, no Cimi, há uma parceria frutuosa e harmoniosa entre homens e mulheres, ao menos é o que percebo em nossa realidade do Regional Norte 1, que compreende os Estados do Amazonas e Roraima. Aqui os desafios são tantos que, se não unirmos as forças, os avanços não acontecem.
Durante a Assembleia, o Cimi assumiu como prioridade “Difundir os conhecimentos sobre REDD+ e aprofundar a luta contra a grilagem de carbono, priorizando a formação de lideranças em torno do tema REDD+/Grilagem de carbono e a mobilização macrorregional, tendo como base o projeto em andamento em Pauini”. Quais as vantagens para os povos originários e para a natureza ter clareza e maior conhecimento sobre esse programa do governo?
Irmã Madalena: A partir da Convenção 169, foi garantido às minorias o direito da consulta livre, prévia e informada, pelos desrespeitos praticados contra elas em relação a seus territórios. Em alguns lugares da Amazônia, essa compra de créditos de carbono está sendo feita sem transparência e monitoramento, e por meio de mecanismos pouco confiáveis. Segundo o procurador da República e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil), Felício Pontes, na Amazônia, estão estocados 73 bilhões de toneladas de carbono, sendo que 58% se encontram nos territórios tradicionais, ou seja, de indígenas, ribeirinhos e quilombolas. A grilagem de carbono permite que as maiores empresas continuem poluindo. O crédito de carbono é como dar licença para os emissores da poluição, as empresas, continuem poluindo “de boa”. Na Assembleia em Manaus, algumas equipes missionárias do Cimi já relataram casos de algumas lideranças “se venderem”, ignorando o protocolo de consulta. O alerta que surgiu no acréscimo das prioridades, foi que, todos nós, missionários do Cimi da Amazônia, trabalhemos na conscientização e clareza sobre esses projetos de REDD+.
Poderia falar um pouco mais sobre o que é o REDD+?
Irmã Madalena: Este é um programa de incentivo do governo federal, desenvolvido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), para recompensar financeiramente países em desenvolvimento por seus resultados de redução de emissões de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento e da degradação florestal. Considera o papel da conservação de estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento de estoques de carbono florestal. Queremos, com essa prioridade assumida na Assembleia, esclarecer sobre o perigo de as comunidades perderem sua autonomia na gerência dos territórios. Somente por meio de um plano de gestão territorial ambiental bem feito, os povos podem, de cabeça erguida e claramente, enfrentar os desafios e serem os orientadores da REDD+ sobre o como se faz gestão territorial. Isto é, produzir sem degradar, pois a REDD+ compra os créditos de carbono e se sente a dona da floresta em pé.
Rosa M. Martins
Mestra em Jornalismo, Imagem e Entretenimento pela Fundação Cásper Líbero, licenciada em Filosofia pela Universidade Salesiana de Lorena (Unisal), bacharela em Teologia pela Pontifícia Universidade São Boaventura de Roma. É missionária scalabriniana e vive em Santo André-SP. Indicada ao Prêmio Tarso Genro de Jornalismo em 2020, foi vencedora do Prêmio Papa Francisco, categoria mestrado, do Prêmio CNBB de Comunicação com a dissertação “Menores estrangeiros não acompanhados: uma análise da representação no fotojornalismo italiano”, em 2021.
Crédito das fotos: Fábio Pereira