Os últimos anos têm sido muito difíceis em vários aspectos. Mesmo antes da famigerada pandemia de covid-19, nosso país já passava por instabilidades importantes na política, na economia, na segurança pública, na saúde, na educação, nos gestos de gentileza, na religião, nas ideias. Reconheço ser estranho começar um texto de Natal recordando essas mazelas, mas elas vêm ao encontro de um trecho de Isaías que pulsa em meu coração nestes dias. É o início da primeira leitura da liturgia da noite de Natal: “O povo que andava na escuridão viu uma grande luz; para os que habitavam na sombra da morte, uma luz resplandeceu” (Isaías 9,1).
Que grande presente esse o de Isaías! Um profeta, uma profetisa de verdade costuma nos tirar do lugar, nos incomodar, seja “puxando nossa orelha”, seja nos animando. Parece que estamos aceitando a vitória das trevas e da morte! Ainda hoje, há pessoas comemorando “apenas” dezenas de mortes diárias causadas pelo covarde coronavírus e seus aliados. Verdadeiramente, andamos à sombra de muitas mortes. Perdemos milhares de nossos irmãos e irmãs devido à pandemia, ao descaso, à violência, à fome e muitos outros males, as também perdemos a esperança, as águas, os animais e as matas.
Não deveríamos chegar a esta particular solenidade do Natal do Senhor apenas mandando, via redes sociais, figurinhas pré-fabricadas, quase sempre com as cafoníssimas neve, renas, frases feitas, estrelinhas piscando… Este Natal precisa ser o marco para a ressurreição de muitos vivos e de virtudes como a esperança e a verdade, o valor a trabalhadores, aos pobres e “lascados”, à ciência, a toda a Criação.
Jesus já veio como um sofredor. Veio sem as mínimas condições, num curral, e foi colocado num comedouro (eis os verdadeiros termos!), porque não havia lugar para seus pais na hospedaria (Lucas 2,7c). Nessa escuridão experimentada por ele próprio, também foi consolado pela luz do cuidado de Maria, que o enrolou em faixas e o colocou na manjedoura (Lucas 2,7b), talvez o lugar menos inseguro no cenário. Foi visitado por pastores e estrangeiros. Naquelas trevas, a luz da ternura e do amor venceram. Eis a Boa-Nova!
Na noite de Natal (dulcíssima, apesar de tudo), não podemos cochilar diante dessas leituras carregadas de vida, santa subversão e ternura, particularmente a esse versículo do profeta. Ele não diz “verá uma grande luz”, mas com a convicção dos grandes na fé, usa outro tempo verbal: o pretérito perfeito. Um fato passado bem delimitado no tempo. Vimos o brilho, mas ouso dizer: continua a surgir diante de nós uma grande luz. Não fechemos nosso coração, nosso olhar para esse resplendor. Deveríamos repetir o trecho como um mantra, a começar de agora até quando julgarmos termos o mínimo de estabilidade e paz.
Apesar de tudo, vamos nos permitir um santo e esperançoso Natal. Que as luzes e a vida vençam! Abramos nossos olhos para a glória do Senhor!
Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo, membro da Equipe de Espiritualidade da Província Brasil Norte das SSpS.