O racismo nosso de cada dia

“Serviço de preto” para se referir ao trabalho malfeito, “cabelo ruim” para aludir-se ao cabelo encaracolado dos negros, “denegrir a imagem” para falar sobre alguma atitude imoral, “negro de alma branca” para afirmar que a pessoa em questão tem atitudes moralmente aceitas, “ter o pé na cozinha” para identificar que a pessoa tem mãe negra. Essas e tantas outras expressões fizeram e ainda fazem parte do cotidiano nacional, especialmente nos lugares onde a população negra foi, ou é, majoritária.

O que essas frases dizem a nosso respeito como sociedade?

Além dessas expressões, as estatísticas evidenciam realidades históricas sobre nosso país. A população negra, entregue à própria sorte desde a Abolição, em 1888, é quem figura no topo do ranking, quando se trata de dados negativos. 

Eis alguns deles. Em 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que, da parcela pobre da população brasileira, 75% eram negros (soma da população que se intitula preta ou parda). Nesse mesmo levantamento, viu-se que apenas 11,9% dos cargos gerenciais eram ocupados por pessoas pretas ou pardas. Com relação aos salários, novamente a população negra apareceu como sendo a que menos recebia proporcionalmente. Enquanto o rendimento médio domiciliar per capita da população branca atingia R$ 1.846,00, o da população negra chegava a R$ 934,00.

Em 2019, novamente o IBGE trouxe dados sobre a realidade da população negra. Dessa vez, foi com relação às chances de serem vítimas de homicídio. Segundo os índices, essa parcela da população tinha 2,7 chances a mais de ser vítima desse tipo de crime do que a branca. Observando os números do sistema carcerário do Brasil, chegou-se novamente à constatação de que negros eram os que figuravam no topo das prisões. Dos cerca de 700 mil presos no Brasil, 61,7% eram pretos ou pardos.

O que esses dados dizem a respeito de nós como sociedade?

Esses números são apenas alguns que nos permitem compreender um retrato produzido ao longo de cinco séculos. O Brasil conviveu com a instituição da escravidão (inicialmente indígena e depois negra) por mais de três séculos e meio. Ao longo desse período, foram arrancados do continente africano e trazidos ao Brasil cerca de 5 milhões de pessoas que se tornariam escravizadas. 

Vilipendiados em sua liberdade, essa população africana escravizada foi os braços e as pernas da economia nacional. Quando, no século XIX, as pressões externas e internas da política e da economia se iniciaram, a instituição da escravidão foi colocada em xeque. 

Fruto de um processo histórico, a abolição da escravatura, por meio da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, foi a quarta de um conjunto que se iniciou em 1850, sendo a Lei Eusébio de Queirós a responsável, inicialmente, por extinguir o tráfico negreiro. Posteriormente, em 1871, foi assinada a Lei do Ventre Livre, que concedia liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data; por fim, em 1885, foi aprovada a Lei dos Sexagenários, que concedia liberdade aos escravizados acima de 60 anos.

O fato é que, com a extinção da escravidão, a população negra continuou a viver à margem da sociedade brasileira. Livres no sentido jurídico, porém excluídos socialmente pelo racismo, pela submoradia dos cortiços, pelo analfabetismo, pela falta de políticas públicas, a população negra continua entregue à própria sorte. O que se viu ao longo de mais de 13 décadas foi a potencialização dessas condições e, como vimos, os dados e as estatísticas são plurais para não nos deixarem dúvidas. 

Como sociedade e nação, as expressões elencadas no início do texto bem como os dados apontados anteriormente são espelhos que refletem uma realidade contra a qual lutamos para não ver. 

A escravidão produziu danos sociais difíceis de serem extirpados. A abolição da escravatura ocorreu com a assinatura de uma lei, porém o preconceito e o racismo não são extintos da mesma forma. Oxalá as futuras gerações possam viver em um país onde a cor da pele não seja obstáculo para o pleno desenvolvimento humano. 

Carlos Aurélio Sobrinho
Doutor, mestre e bacharel em Ciências Sociais, licenciado em Filosofia e História, professor de História, Filosofia e Sociologia no ensino médio.

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