A pandemia não trouxe apenas dor, luto, lágrimas. Estamos sendo obrigados a rever várias atitudes, inclusive dentro da prática religiosa. Assim, eu gostaria de deter-me um pouco nesse aspecto. Antes de entrar no tema do Natal, acho bom partilhar algumas considerações.
Nestes meses, foram revelados, escancarados alguns problemas que quase sempre existiram, mas andavam meio disfarçados pela correria do cotidiano. Sem querer esgotar a lista, destaco aqui o clericalismo (não apenas de clérigos, diga-se!); o desconhecimento da amplitude litúrgica de nossa Igreja (até hoje, muitos pensam a liturgia apenas como a missa); e o “assistir” passivamente aos ritos, seja pela tevê, seja pelas redes sociais; em resumo, aflorou-se a ignorância ou a omissão quanto às bases existentes desde o início da Igreja e restabelecidas, com louvor, pelo Concílio Vaticano II.
Os perigos reais da famigerada covid-19 obrigaram comunidades de fé a terem de respeitar o isolamento, afetando gravemente a vida eclesial. Um dos lados positivos dessa história é a Igreja ter tirado a poeira que escondia um tesouro: as liturgias domésticas.
Até pelos séculos IV, V, os seguidores de Jesus se reuniam na chamada domus ecclesiae para celebrarem os sacramentos, serem instruídos, organizarem a caridade e consolarem-se. Muitos de nossos ritos atuais são herança desse tempo. O cristianismo, contudo, passou a ser “religião oficial”, e isso levou os cultos para ambientes públicos, cheios de pompa.
A liturgia doméstica valoriza o sacerdócio comum dos batizados. Essas celebrações, devem estar em comunhão com a Igreja, mas não se atrelam a certos protocolos dos ofícios comunitários. O despojamento, a brevidade e, claro, o ar familiar dão o tom. Por isso não é recomendável transferir mecanicamente para o lar o modelo da igreja paroquial. Em tempo: é importante sublinhar que esse formato é “outra liturgia” e não se opõe jamais à comunitária. Ambas podem (e precisam) conviver, mesmo depois da pandemia.
Para a liturgia doméstica do Natal
O Natal é oportunidade para uma tocante celebração na domus ecclesiae deste início de Terceiro Milênio. Há inúmeras propostas elaboradas por especialistas, quase todas maravilhosas! Vale reforçar: como é uma autêntica liturgia, o presidente é Cristo! Ele está presente, de forma real, na Palavra proclamada e na reunião dos batizados.
Ouso sugerir alguns encaminhamentos. Evitarei aqui dar os textos prontos, pois cada Igreja-lar tem sua autonomia para dirigir ao Senhor as próprias orações. Nunca é demais recordar que o povo de Deus, em Cristo, é sacerdote, profeta e rei, e, pelo Espírito Santo, sabe como fazer (cf. Romanos 8,26-27).
No que couberem, as orientações são válidas também para quem, devido ao isolamento, tem de celebrar sozinho ou para inúmeros outros contextos, como junto ao leito de um enfermo, por exemplo. Jesus veio para todos!
O ambiente
Escolha um lugar significativo para sua família. Pode ser em torno do presépio, da mesa das refeições cotidianas, na sala de estar, na varanda, no quintal… Evite ornatos alheios ao espírito cristão, próprio dessa solenidade. Considere como alienígenas figuras do Papai Noel, neve artificial, renas, trenós, duendes e outros penduricalhos. Jesus é o centro!
A luz é um elemento significativo do Natal, por isso, se for oportuno, haja pelo menos uma vela. Ela pode ser acessa no início da celebração, na proclamação do Evangelho ou em outro ponto do rito.
A Bíblia é outro sinal a estar presente desde o início da oração. Afinal, Cristo é a Palavra que se fez ser humano e veio viver conosco (cf. João 1,14). Em outros contextos, faça as devidas adaptações.
Os ministérios
Escolha com antecedência alguém para presidir o momento. É recomendável que a leitura bíblica seja proclamada por quem tem mais aptidão para leitura. Também seria muito significativo a pessoa mais idosa conceder a bênção final. Há outros ministérios que podem ser exercidos, como o de música. Como é uma liturgia, repito, haja o devido esmero: a preparação do espaço, o contato prévio com as leituras, o ensaio dos cânticos. Informalidade não significa falta de capricho.
As crianças
É muitíssimo louvável o envolvimento das crianças. Que tal, após a proclamação do Evangelho, uma delas colocar a imagem do Menino Jesus sobre a manjedoura? Em seguida, as outras podem depositar flores no presépio. O importante é elas se sentirem acolhidas. Essa é uma das heranças não corroídas pela traça (cf. Mateus 6,19-20). Com certeza, levarão por toda a vida uma doce recordação desse dia sagrado e, queira Deus, sigam o exemplo.
As leituras
Recomendo vivamente que as leituras acompanhem as da liturgia solene. Isso demonstra comunhão com toda a Igreja e ajuda a manter o foco na vinda de Jesus. Jesus está presente também no Pão da Palavra, por isso é uma hora especial. Podem-se proclamar todas as leituras ou apenas algumas delas, porém não se deve deixar de lado o Evangelho. A seguir, as indicações:
- Para quem celebra na tarde do dia 24 de dezembro: Isaías (62,1-5); Salmo 88/89; Atos dos Apóstolos (13,16-17.22-25); * Evangelho de Mateus (1,18-25).
- Para a celebração da noite de 24 de dezembro: Isaías (9,1-6); Salmo 95/96; Tito (2,11-14); * Evangelho de Lucas (2,1-14).
- Para quem celebra na madrugada do dia 25 de dezembro: Isaías (62,11-12); Salmo 96/97; Tito (3,4-7); * Evangelho de Lucas (2,15-20).
- Para a celebração nas outras horas de 25 de dezembro: Isaías (52,7-10); Salmo 97/98; Hebreus (1,1-6); * Evangelho de João (1,1-18 ou 1,1-5.9-14).
Preces
Com a família reunida, é salutar dirigir a Deus louvores, pedidos e agradecimentos; interceder por outros familiares, pelos sofredores, pelos vizinhos, pelos falecidos, pelo mundo. Recomendo que as preces sejam breves e bem objetivas. Depois todos rezam juntos o Pai-Nosso. Caso haja membros de diferentes denominações cristãs, pode-se recitar a versão ecumênica.
Bênção à mesa
Um gesto sacratíssimo é bendizer a Deus por Ele nos nutrir com o Pão da Palavra, da Eucaristia e com o alimento a sustentar-nos o corpo. Seria muito oportuno que todos, juntos, abençoassem a reunião em torno da mesa, um prenúncio do alegre banquete na Casa do Pai e anunciado por Jesus. Outra possibilidade é o membro mais idoso ou quem preparou a ceia conduzir essa (breve) oração. É salutar recordar de quem trabalha para os alimentos chegarem à nossa mesa e daqueles que não tem o pão suficiente nem mesmo no Natal.
Isolamento
Continuamos a viver a pandemia, talvez uma nova fase crítica. Não é hora de aventuras, mas de muita disciplina. É óbvio que até dói dizer isto, todavia, nestes difíceis tempos, o ideal é cada núcleo familiar organizar sua celebração. Os cuidados precisam ser reforçadíssimos, assim poderemos passar juntos muitos natais.
Desça sobre você, seus bons propósitos, sua família, a bênção do Deus da Vida! Um santo Natal!
Para saber mais
Rede Celebra
Revista de Liturgia (blog)
Portal A12
Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo.