- Encontrei-me com meus dois “eus”! Um é livre, outro é meio escravo. Vivem uma relação, às vezes, simbiótica, outras esquizofrênicas. Simbióticas porque um está dependente do outro, esquizofrênica porque estão divididos. O que une os dois é o self, que dá o senso de unidade, mas, para um sentido mais pleno, acrescentar um “D”, que seria então “Deus”!
O meu “eu livre” me acorda de manhã, me faz levantar, me lembra de elevar o pensamento a Deus, me leva para tomar café, me faz retomar os compromissos que tenho… me faz pensar nas coisas que devo fazer e organiza minha agenda. Meu “eu livre” é bondoso, se esforça para não discriminar ninguém, tratar a todos sem preconceito. Ele me faz discernir o que é justo e bom, e a praticá-lo. Ele me faz ser uma pessoa de bem, que escuta, que aceita o diferente dos outros. É otimista, não se deixa abater pelos infortúnios, é responsável pelo que assume. Gosta de si como é, sem presunção de ser melhor que os outros. Aceita suas emoções como expressões de si, procura mantê-las sob controle, sem as reprimir. Acredita em suas próprias possibilidades e consegue caminhar com as próprias pernas.
Meu “eu escravo”… Ele atrapalha o “eu livre”, porque é muito sorrateiro. Ele se comporta muito centrado em si mesmo, é egoísta. Pensa em suas regalias, em suas gratificações afetivas, sempre preocupado com sua imagem diante dos outros. Esconde suas malícias e, com seus truques inconscientes, engana o “eu livre”. Apoia-se em mecanismos inconscientes e, como tal, age para burlar as iniciativas do “eu livre”. Ele é invejoso, ciumento, não aceita com naturalidade o sucesso do outro, quer o afeto dos outros só para si. Até quando o “eu livre” está rezando e querendo se concentrar, vem ele com pensamentos que distraem e distanciam da reza que o outro está fazendo. Ele mexe com ideias que perambulam a mente e se manifestam numa segunda voz, meio camuflada, que ficam lá na cabeça, divertindo-se com um monte de sensações e fantasias.
Quando o “eu livre” se dá conta, tenta controlar essas manipulações e botar o “eu escravo” em seu canto. Contudo não é fácil controlá-lo sempre, ainda mais quando ele está carente de afeto ou necessitado de atenções e valorizações. Nessa hora, ele aparece poderoso, sem dar muita trela pro “eu livre”, sobretudo quando este está meio cansado das lutas do dia.
O meu “eu escravo” está intimamente vinculado aos meus afetos, aos meus desejos de poder, às minhas carências, às minhas vaidades, aos meus impulsos sexuais, aos meus hábitos mal controlados, à minha agressividade. Esse “eu escravo” fica sempre cutucando e importunando o “eu livre”. Ele é sorrateiro, fingido, mentiroso, joga com segundas intenções, é tapeador, astuto e enganador.
O “eu livre” se vira como pode, sabe se impor quando toma consciência das ações maquinadas pelo “eu escravo”. É uma luta permanente, uma tensão dialética. Há uma simbiose entre os dois, um não vive sem o outro, por incrível que pareça! É uma tal de aposta de quem predomina mais.
Meu “eu livre” me leva para o verdadeiro sentido da vida que vê fora de si. Apoia-se em valores permanentes e transcendentes, busca pelos ideais e luta por torná-los experiências vividas, mesmo quando meu “eu escravo” age para contrariá-lo, cutucando os pontos fracos, como necessidade de afeto, de reconhecimento. Tenho a impressão de que o “eu livre” está em vantagem, tem predominado sobre o “eu escravo”, mas não pode dar moleza, porque este continua vivo.
Meu “eu livre” descobriu alguns modos para diminuir a influência do “eu escravo”. Entre outros, percebeu que precisa sempre se conhecer melhor. Precisa revisar sua vida desde o começo. Conhecer bem sua história e que experiências viveu, que marcaram mais, sobretudo aquelas de cunho negativo. Aceitar seu passado como ele foi, sem ficar se vitimizando, atribuindo aos outros seus próprios problemas e fracassos. Sem, contudo, também deixar de reconhecer que muitas coisas sofridas foram causadas por terceiros, entre eles os próprios pais e irmãos. Não se trata de descobrir quem é o culpado, mas de reconhecer a realidade como foi, de ser objetivo.
Como somos seres que dependemos uns dos outros, sempre influenciamos e somos influenciados tanto para o bem como para o mal. Temos de dividir as responsabilidades, sem perder os vínculos positivos que se criaram nas interações mútuas. Meu “eu livre” já conhece, em parte, as dinâmicas de meu “eu escravo”, embora caia, às vezes, em suas armadilhas. Meu “eu livre” deu-se conta de que, sozinho, não consegue controlar as manifestações do “eu escravo”. Precisa contar com a força da graça de Deus que se obtém pela oração e piedade, pela assimilação da Palavra de Deus e os sacramentos da Igreja.
Meu “eu livre” gosta de viver e suporta, sem muito queixume, suas limitações. Sabe que não precisa ser perfeito para ser feliz, basta o que é, o que conquistou e os sonhos que tem. Detesta se vitimizar, mesmo que, às vezes, o seja, sem se dar conta, porque o “eu escravo” o enganou com seus truques. Basicamente tem consciência de si e aceita conviver com seu mano, “eu escravo”, sabendo que cada dia pode tornar-se um pouco mais livre, fortalecendo suas convicções naquilo que realmente vale a pena. Conforme se conhece mais, aceita-se melhor e se esforça para conviver bem com os outros, vai melhorando sua qualidade de vida e suas relações.
Quanto ao “eu escravo”, ele não se entrega facilmente, porque está dominado por imaturidades, ficou “criança” e se comporta como tal. Por isso o “eu livre” precisa ter paciência e conviver com essa criança manhosa. Não precisa renegá-la nem a vilipendiar, porque está aí e faz parte do self.
Há vários nomes que se poderiam dar a esses dois “eus”. Por exemplo, “eu maduro” para o livre e “imaturo” para o escravo; eu “adulto” para o livre, “infantil” para o escravo; “eu pacífico” para o livre e “eu conflitivo” para o escravo… Essa dualidade faz parte do self que dá sentido de unidade e senso de individuação, para usar um conceito de Jung. Eis um pouco do que sou e conheço, sabendo que há muitos mistérios que fazem parte de mim, coisas que só Deus conhece!
Padre Deolino Pedro Baldissera, SDS