Muitos de nós, de uma certa idade, lembram ainda quando a Quaresma era observada com muito rigor nas famílias e comunidades cristãs, com especial ênfase em privar-se de algum bem (doces, bebidas, cinema ou algo semelhante). Que alegria quando chegava o Sábado Santo, quando terminava a Quaresma ao meio-dia, pois tudo aquilo terminava! Sem negar o valor das práticas daqueles tempos idos, antes da reforma litúrgica do Papa Pio XII, a celebração da Páscoa foi diminuída em sua importância e quase que desligada da caminhada quaresmal.
O ponto alto do ano litúrgico é o Tríduo Pascal. Aqui está resumido todo o mistério de nossa salvação, pela vida, morte e ressurreição de Jesus. Na quinta à noite, comemoramos a Ceia que sintetizou toda a vida de Jesus. “Tendo amado os seus, amou-os até o extremo” (João 13,1), até o último ponto de doação, dando a sua vida. Jesus nos deu o mandamento que deve nortear toda a nossa vida: “Façam isso em memória de mim”. Não fazendo uma lembrança de algo que já passou, mas o memorial, tornando presente tudo o que foi celebrado na ceia derradeira e comprometendo-nos com o seguimento de Jesus hoje, alimentados por seu Corpo e Sangue, com uma vida de amor e solidariedade.
Há uma ligação estreita entre todos os elementos do Tríduo, pois a Sexta-Feira foi a consequência lógica da vida de Jesus. Ele não veio para morrer, mas para que “todos tenham a vida e a vida em abundância” (João 10,10). Por isso seu projeto do Reino bateu frontalmente com os projetos de dominação de seu tempo e, por isso, ele foi assassinado. Fiel até o fim, assumiu as consequências da fidelidade à vontade do Pai e foi morto, e morto na Cruz. Desvinculado da Quinta-Feira Santa e do Sábado Santo, Sexta-Feira seria a celebração de uma derrota fragorosa. Por isso, depois de sentirmos a dor e a tristeza da Sexta-Feira, aparente vitória do mal, celebramos, pela Liturgia Pascal, numa explosão de alegria: a vitória de Deus, do bem, na Ressurreição de Jesus, garantia da nossa.
Salta aos olhos, mesmo com uma leitura superficial dos relatos evangélicos, que a experiência da Páscoa fez uma reviravolta na vida dos discípulos e discípulas. De um grupo de decepcionados, desiludidos, fracassados, tornaram-se um grupo dinâmico, evangelizador, animado, olhando a vida, com suas alegrias e tristezas, de outra maneira. Isso fica claro no relato dos Discípulos de Emaús, em Lucas (24,13-35).
Podemos sentir, no desabar de Cléofas, sentimentos de tristeza, decepção, desilusão, até revolta contra Jesus por, aparentemente, Ele ter fracassado e destruído os sonhos e esperanças deles: “Nós esperávamos (notemos o tempo do verbo) que fosse Ele o libertador de Israel, mas… já faz três dias que tudo isso aconteceu” (Lucas 24,21). De repente, depois de ter feito a experiência da presença de Jesus Ressuscitado, tudo muda: “Então, um disse ao outro: ‘Não estava o nosso coração ardendo quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?’. Na mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os Onze, reunidos com os outros” (Lucas 24,32-33).
Páscoa era para eles, e tem de ser para nós, “tempo de renascer”. Mas é bom notar: só “renasce” o que morreu! Temos de descobrir em nós o que precisa renascer, o que tem morrido ou está agonizando. Pode ser a fé, a força, o ânimo, a esperança, o engajamento na comunidade, a energia para lutar por um mundo melhor. Todas essas coisas são capazes de renascer se realmente fizermos a real experiência da Páscoa, da ressurreição de Jesus. Não de uma maneira sentimental e aérea, mas realista. Para ressuscitar, Jesus teve de passar realmente pela morte. Mas venceu a morte e continua a viver, e no meio de nós. Lembremos como Paulo dava importância à Ressurreição. Escrevendo aos coríntios, uma comunidade onde alguns “iluminados” negavam ou menosprezavam o fato da Ressurreição, ele brada: “Se os mortos não ressuscitam, Cristo também não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, a fé que vocês têm é ilusória, e vocês ainda estão nos seus pecados… Se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens” (1 Coríntios 15,16-19).
Não há dúvida de que não é fácil manter sempre a esperança, a fé e a coragem diante de tantas dificuldades na vida. Sempre foi assim. O autor anônimo de Hebreus, escrevendo na segunda parte do primeiro século a uma comunidade judaico-cristã, sabia disso e falou: “Corramos com perseverança na corrida, com os olhos fixos em Jesus… Para que vocês não se cansem e não percam o ânimo, pensem atentamente em Jesus” (Hebreus 12,1c-3).
A celebração da Semana Santa nos dá uma oportunidade de fazer isto: olhar de novo atentamente para Jesus, o Verbo de Deus, “que se fez homem e armou a sua tenda no meio de nós” (João 1,14). Assim podemos reanimar nossa fé, nossa missão, nossa participação na comunidade, olhando, recordando e celebrando o Jesus real, de mão calejada, que se tornou igual a nós em tudo, menos no pecado. Se, apesar de ser abandonado por quase todos e sentindo-se abandonado até pelo Pai, gritando, “Meu Deus, meu Deus! Por que me abandonaste?” (Marcos 15,34), mesmo assim, foi fiel até o fim, foi ressuscitado pelo Pai. Tempo de renovação, tempo de reviver, tempo de ânimo novo, tempo santo; a celebração da vida, morte e ressurreição de Jesus, “autor e consumidor da fé” (Hebreus 12,3).
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.