“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?”
Mateus 16,13-19
O evangelho indicado para a festa de São Pedro e São Paulo nos situa diante de uma pergunta provocativa de Jesus: “e vós quem dizeis que eu sou”. Tal pergunta, dirigida aos discípulos e a cada um de nós, não só ajuda a “des-velar” (tirar o véu) a verdadeira identidade de Jesus como também nossa identidade original.
Pedro, ao responder − “Tu és o Messias…” − no fundo, estava também deixando transparecer sua própria nobreza interior, aquilo que é o fundamento e sobre a qual se pode construir toda uma vida.
E Jesus, como verdadeiro “pedagogo”, explicita o que estava escondido nas profundezas do coração de Pedro. “Tu és ‘petra’ (rocha, base sólida)”. Essa é a verdadeira identidade de Pedro.
Ressoa no interior de cada um de nós esta mesma voz: “Tu és rocha…”.
O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos…; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de autotranscendência, de crescimento, de maturidade.
Só a partir da vivência e da solidez interior poderemos descobrir o que significa Jesus como “Messias, o Filho do Deus vivo”. Só a partir da identificação com Ele é que poderemos também descobrir nossa original filiação, fundamento de nossa vida: “somos filhos e filhas do Deus vivo”.
A filiação é a solidez que nos unifica a todos; ela é a base que sustenta nossa identificação com Jesus Cristo.
Não é fácil tentar responder com sinceridade à pergunta de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”. Na realidade, “quem é Jesus para nós?”. Sua pessoa, seu modo original de ser e viver, chega a nós através de vinte séculos de imagens, fórmulas, devoções, experiências, interpretações culturais… que vão desvelando e velando ao mesmo tempo sua riqueza insondável.
Mas, além disso, cada um de nós vai revestindo a Jesus com aquilo que nós somos. E acabamos projetando n’Ele nossos desejos, aspirações, interesses e limitações. E, quase sem nos dar conta, O apequenamos e O desfiguramos, mesmo quando queremos exaltá-lo.
Mas Jesus continua vivo, e sua presença, na história da humanidade, sempre se revela provocativa e surpreendente. Na realidade, o que notamos é que grande parte dos cristãos não seguem e não se identificam com a Pessoa de Jesus; seguem doutrinas, ritos, algumas obrigações legais… que não têm impacto no modo de viver de cada um.
Mas Jesus não se deixa etiquetar nem se deixa reduzir a alguns ritos, algumas fórmulas ou alguns costumes.
Jesus sempre desconcerta a quem se aproxima d’Ele com atitude aberta e sincera. Ele se revela sempre diferente daquilo que pensamos e esperamos. Sempre abre novas brechas em nossa vida, rompe nossos esquemas e nos atrai a uma vida nova.
Quanto mais O conhecemos, mais sabemos que ainda estamos começando a descobri-lo.
Responder à pergunta − “quem dizeis que eu sou?” − é “perigoso” porque nos compromete com o modo de viver de Jesus: sua liberdade perante as tradições religiosas, sua relação com os mais pobres, sua opção clara em favor de uma causa humanizadora (Reino), a vivência dos valores presentes nas Bem-aventuranças, a visibilização do mandamento do Amor…
Literalmente falando, Jesus é um “subversivo”, pois “sub-verte” nosso modo fechado de viver e de nos relacionar com os outros. Percebemos nele uma entrega livre que desmascara nosso egoísmo; Ele revela uma paixão pela justiça que sacode nossas seguranças, privilégios e busca de poder; transparece n’Ele uma ternura que deixa descoberto nossa mesquinhez, uma liberdade que põe às claras nossos apegos e dependências.
E, sobretudo, vemos n’Ele um mistério de abertura, proximidade e intimidade com o Deus da Vida, que nos atrai e nos convida também a abrir nossa existência à intimidade com Ele.
Só iremos conhecendo Jesus na medida em que nos identificamos com Ele e nos revestimos de seus sentimentos, valores, critérios… Só há um caminho para aprofundar em seu mistério: segui-Lo; seguir humildemente seus passos, abrir-nos com Ele ao Pai, prolongar seus gestos de amor e ternura para com todos, olhar a vida com seus olhos, compartilhar sua fidelidade à causa do Reino…
São Pedro e São Paulo viveram, por caminhos diferentes, um original encontro com o Mestre da Galileia. Encontro que “des-velou” e extraiu o que havia de mais nobre e humano no coração de cada um deles (“tu és rocha” – “tu és paulo”). Foi essa solidez interior, que se visibilizou na maneira original de cada um seguir Jesus Cristo, que os transformou em colunas da Nova Comunidade dos seguidores do Nazareno.
A eles foi conferida uma “autoridade” como caminho para o serviço e a promoção da vida.
Jesus compartilha com eles sua mesma “autoridade”, que não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
A expressão “autoridade” vem do verbo latino “augere”,que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente… É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa recuperar a autoria, ativar a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Jesus, deveria ser exercida à maneira como Jesus a exerceu, e isso vale tanto para aqueles que detêm uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.
Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir.
O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.
Isso significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: suplicar a graça “do conhecimento interno de Jesus para mais amá-lo e mais segui-lo” (Santo Inácio).
“Conhecimento” que faz emergir aquilo que é o melhor em seu interior, a verdade da sua pessoa,para que você consiga ter uma visão ampla de si mesmo(a) e realizar-se da melhor maneira possível, ativando suas potencialidades. Cada um(a) é diferente, único(a), com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modos próprios de viver…
– Deixe ressoar em seu coração a voz de Jesus: “Tu és rocha firme, sobre a qual quero construir minha morada, em comunhão com o Pai e o Espírito Santo”.
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).