Perdão em tempos de fragmentação

O que fazer diante do contexto de fragmentação em que vivemos? Sentir-nos afetados por essa situação pode ser um chamado a estar atentos. Isaías nos convida a alargar a tenda de nossa vida, afundando as estacas, para que possam segurar bem a tenda (Is 54,2)

Há uma epidemia que silenciosamente se espalha e nos coloca uns contra os outros, criando inimigos e culpados para as crises que vivemos hoje, como humanidade. Essas crises podem chegar a nós como uma ameaça e despertar forças ocultas de violência, movidas pelo medo e instinto de defesa.

Por outro lado, temos hoje movimentos que vivem e anunciam o perdão e que também se percebem como uma irradiação que leva cura e transformação ao mundo. O perdão é um deles.

Antes de tratar do perdão, olhamos para a vitimização como raiva, ressentimento sedimentado principalmente em nosso inconsciente. No estado de vitimização, a pessoa fica desconectada dos sentimentos da dor e das perdas que sofreu; fica no medo, na baixa autoestima e na repetição de comportamentos compulsivos.

Esse ressentimento pode ser projetado para fora de si como vingança em pensamentos, palavras, ações e omissões, achando que isso resolve. Mas a dor reprimida continua pulsando para dentro e para fora de si.

A dor não curada atua como um véu através do qual avaliamos, de maneira distorcida, a realidade que nos rodeia e, assim, ficamos projetando condicionamentos de nossa mente, acreditando ter razão e agindo em consequência. É sobre essa energia violenta, alojada em nosso consciente e principalmente em nosso inconsciente, ativada pela manipulação das fake news, dos medos e insegurança de nosso tempo, que pode vir uma das causas das divisões e polarizações que vivemos atualmente.

O ressentimento dificulta também aceitar os diferentes modos de ser e viver; dificulta lidar com a pluralidade o que explica a intolerância presente em nossos dias.

Estamos ante um chamado a tomar consciência e discernir nossas escolhas. Perdão é uma escolha que pode resgatar nossa profunda dignidade e conduzir-nos ao que realmente somos em nossa essência. Perdão, para Robin Casarjian,1 é uma decisão, um processo e um modo de vida. A palavra “per-dão” significa doar, doar a dor que pede passagem para ser liberada; desapego do que nos prende ao ressentimento.

Nas Escolas de Perdão e Reconciliação,2 é oferecida a possibilidade de fazer um exercício sobre esse processo que permite olhar-se como vítima, num espaço seguro onde a dor é reconhecida, acolhida e compreendida. Temos dificuldade de entrar em relação com a dor causada pelas ofensas e expressá-la pela necessidade de aparecer bem, não parecer fraco; por medo, vergonha, pelo viver no automático e na inconsciência.

O processo do perdão passa pela expressão da dor e pede a habilidade de olhar para dentro de nós, conhecer-nos, perdoar-nos e amar-nos; um processo que nos leva à autocompaixão conosco e, ao mesmo tempo, com as outras pessoas; um caminho que nos conduz a descobrir quem somos.

Essa é uma possibilidade de alargar nossa tenda e fincar mais profundamente as estacas na imagem que nos apresenta o profeta Isaías. É um chamado fundamental diante da ameaça de nos considerarmos bons e projetar no outro, no diferente, o que escondemos de nós mesmos e atribuir aos outros a causa dos males do mundo, e, assim, justificar a violência até em nome de Deus, como estamos vendo em nosso tempo.

Perdoar nos permite avançar como humanidade, viver com mais saúde, liberdade e felicidade; permite ser criadores da história no momento presente, único em que podemos escolher a vida e o amor.

Recentemente celebramos a Páscoa, passagem da morte para a vida, festa do perdão; grande convite a olhar-nos como Deus nos olha.

Notas

1 Casarjian, Robin. O livro do perdão. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

2 Escolas de Perdão e Reconciliação (Espere). Há vinte anos, nasceram na Colômbia e logo se espalharam por vários países da América Latina, chegando também ao Brasil.

Irmã Martina Maria González Garcia, SSpS

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