Por que não fui eu?

 

Conta-se que o rabino Zusya irrompeu em lágrimas no leito de morte. Perguntado sobre o porquê ele estar chorando, respondeu: “Quando eu for levado à presença de Deus, Ele não vai perguntar por que não fui Moisés, afinal de contas, eu não sou Moisés; Deus também não vai perguntar por que não fui Isaías, porque também não sou Isaías. Por que estou chorando? Porque Deus vai perguntar: ‘Por que cargas d’água você não foi Zusya?’”.

Assim é a vida de muitos. Frequentemente deixamos nossa originalidade de lado e assumimos um figurino que não é o nosso. Preferimos ser xerox de outros a ser originais. Por que isso acontece? Talvez haja várias explicações, mas penso que a principal está vinculada à dificuldade de autoaceitação. 

Nosso “complexo de inferioridade” que expõe nossas limitações é uma ameaça constante para um eu imaturo, que precisa sentir-se sempre aprovado pelos outros para sentir-se bem. A estima pessoal depende deles e não de si próprio. Essa falsa percepção cria o mito da perfeição ou do sábio que deve saber tudo e nunca falhar em seus propósitos. Mostrar-se sempre inabalado, jamais criticado e sempre aceito. Essa é uma expectativa frequente em quem não se deu conta ainda de que é um ser limitado, sujeito a fracassos, e aceitar-se mesmo assim. É difícil reconhecer as próprias limitações e conviver com elas pacificamente. Rejeitar-se diante de fracassos é a saída que muitos encontram para esconder-se da própria nudez e fingir que não aconteceu nada.

Ser sujeito da própria história implica responsabilidade diante do que se faz ou se deixa de fazer. Assumir as próprias decisões, com suas consequências, é pôr-se em sintonia com suas convicções formadas em base de princípios válidos que vão além de conveniências momentâneas. Manter-se de pé, sobre as próprias pernas, diante dos fracassos é uma prova de que está sendo aquilo que acredita e não marionete manipulada pelas opiniões alheias ou configuradas por desejos de grandeza e autorreferencialidade.

Vivemos uma época em que a inteligência artificial constrói figurinos baseados nas características pessoais e capazes de reproduzir, quase com perfeição, o modus vivendi da pessoa. Tais representações enganam os expectadores, a ponto de fazê-los acreditar que estão diante de um sujeito real, sem se darem conta de que é “artificial”. Muita gente gosta de ser vista como especial (artificial), porque não aceita o ser limitado que é.

Daí surge a necessidade, de vez em quando, de se perguntar a quantas anda sua originalidade. Quais os valores em que acredita de verdade, que convicções tem que orientam a vida? Quem se perde na busca de cópias xerox de si nos outros nunca vai encontrar-se consigo mesmo. 

Os outros são importantes como modelos identificadores na adolescência. O adolescente precisa deles para desenvolver a própria identidade, como espelho reflexo, mas, como adultos, já deveríamos ter superado essa fase. Se ainda não temos firmeza de caráter e personalidade definida com características pessoais e subjetivas, continuaremos a ser reflexo do que os outros esperam de nós.

Zusya tinha razão de chorar por se apresentar diante de Deus sem ter vivido a própria identidade e se perdido na busca da que não era a sua. Por isso, antes de estar no “leito de morte”, é tempo de reencontrar-se consigo mesmo e se apresentar diante de Deus não como cópia, mas com a originalidade que sua imagem e semelhança imprimiu em nosso íntimo. Ser adulto não é fácil em um mundo que nos quer xerox, consumidores de modelos ditados pela moda e pela mídia.

 

 

Padre Deolino Pedro Baldissera, SDS

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