“… conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência para sempre”
(Lucas 1,39-56)
Neste domingo celebramos a festa da Assunção de Maria. Normalmente, quando pensamos na Assunção, vêm à nossa mente muitas imagens de Maria olhando para o alto, com as mãos juntas, rodeada de anjos, sobre nuvens que indicam que é elevada ao céu. É uma festa que nos fala da santidade e da plenitude daquela que mais amou, conheceu e seguiu seu Filho. Mas, se ficarmos só com as imagens tradicionais da elevação de Maria, não dizem muito para nós, porque nossa própria experiência tem pouco a ver com elas.
O próprio Evangelho deste domingo nos ajuda a tomar distância das imagens tradicionais da Assunção e nos apresenta Maria com os pés na terra. Ela foi “assumida” por Deus porque “desceu” ao mais profundo da história humana, fazendo-se solidária e servidora em favor de seus filhos e filhas. É na vivência de “saídas” e “encontros” que Maria se revela próxima de todos nós; continuamente, somos chamados a viver a “cultura do encontro” e do deslocamento solidário, sobretudo com os mais pobres e excluídos.
O evangelho da Visitação nos revela o encontro de duas mulheres grávidas. Maria e Isabel são o ícone do verdadeiro “encontro”, carregado de hospitalidade, alegria e serviço; ambas, em idades diferentes, se acolhem, se entendem e se ajudam mutuamente, pois compartilham o mistério da vida que cada uma carrega em seu ventre. É como se uma dissesse à outra: “isto que está acontecendo em seu ventre é coisa de Deus, os homens não compreendem!”.
Segundo Lucas, Maria, depois de receber a notícia de que seria a mãe do Messias, “pôs-se a caminho” com “prontidão”, que também pode ser traduzido “com diligência, com empenho, com cuidado…”.
Trata-se de uma decisão que brotou de sua nova condição de futura mãe, de sentir que em suas entranhas crescia a nova Vida que vem de Deus. Deus saiu ao encontro de Maria e esta vai ao encontro de Isabel.
São duas gestações que nos convidam a contemplá-las à luz da fé, porque acontecem em circunstâncias que humanamente são impossíveis. No caso de Maria, porque “não conhece homem algum” e, no de Isabel, porque é anciã, “concebeu na velhice”.A vida que nasce de Deus rompe todas as normas, supera nossos cálculos, nos surpreende, irrompendo com força ali onde nós não vemos possibilidades.
Essa experiência de que para Deus “nada é impossível”, de que Ele sai ao encontro e faz surgir vida em duas mulheres simples, como entre tantos pobres e humildes, é uma realidade vivida pelas primeiras comunidades cristãs, pobres, pequenas e perseguidas. É também a experiência nossa, tanto no nível pessoal como comunitário. São muitos(as) que, às vezes, se sentem como Isabel: idosas e cansadas para algo novo, ou muito sós e cheios(as) de dificuldades para acolher as surpresas de Deus.
Duas mulheres grávidas, que se encontram; de que falam? Sem dúvida, da “novidade” de seus ventres, de sua alegria, do futuro… Nesse caso, nos diz o evangelho, que a alegria é transbordante e contagiosa, tão profunda e intensa que “o menino salta no ventre de Isabel” e esta se enche do Espírito de Deus.
E a partir desse Espírito, falam de um futuro que as transcende, que não é só o futuro de seus filhos, é o futuro de todo o povo, de toda a humanidade.
A profundidade da alegria e da fé faz com que este encontro adquira outra dimensão: do encontro de duas mulheres passa a ser o encontro definitivo e permanente de Deus e nosso mundo, seu mundo.
Assim, Maria se põe a cantar ao Deus da vida e ao mundo novo que Ele torna possível; ela, consciente do que está vivendo, deixa jorrar de seu interior um ousado cântico que expressa uma das imagens de Deus mais inspiradoras e carregadas de esperança do Novo Testamento.
Maria expande sua consciência, maravilhada da ação de Deus nela e para além dela; em Deus, ela se sente em sintonia com a história de seu povo e da humanidade inteira. Descobre que Deus é grande porque entra na história a partir dos últimos, dos pobres e deslocados. E afirma com contundência que é a ela, humilde mulher nazarena, a quem todas as gerações chamarão bem-aventurada.
E essa experiência de que Deus “faz maravilhas nela” é a razão pela qual afirma que Ele é misericordioso e que esta misericórdia, realizada nela, se estende, de geração em geração, sobre aqueles que o temem, sobre aqueles que creem nele e o amam.
Sua experiência pessoal é a que lhe faz descobrir como Deus atua no mundo e como está disposto a fazer novo nosso futuro, com ações desestabilizadoras em favor dos pequenos, dos necessitados.
Aclamar e celebrar hoje Maria, que é levada ao encontro definitivo com Deus, nos compromete a viver, como ela, os outros encontros transformadores nos quais partilhamos e cantamos a vida que Deus, por sua misericórdia, derrama em nós, em nossa pobre realidade.
No Magnificat, Maria canta a sua própria história e “faz memória” da história de seu povo. E isso nos desafia a fazer o mesmo. Ninguém vive uma vida espiritual fecunda enquanto não for capaz de assumir aquilo que “é” na sua originalidade, se não for capaz de construir a relação com Deus como um diálogo vivo entre um “eu” e um “tu”. A oração de Maria não é feita de fórmulas. Ela expõe a sua vida naquilo que diz.
À luz do Magnificat, a história não se reduz a eventos opacos, vazios, tristes…
Com o cântico de Maria, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A ação providente de Deus na história plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”.
O Magnificat nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo…
O encontro com a História Sagrada nos ajuda a ler nossa história sob nova perspectiva: a da salvação.
Deus desce à nossa própria história, iluminando-a e carregando-a de sentido.
A história pessoal e a história do mundo tornam-se o lugar habitual da experiência de Deus, a montanha da sarça ardente que não se consome.
A partir dessa perspectiva, nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade; ela nos abre um futuro de esperança.
Só a memória agradecida está em condição de nos ajudar a entender o sentido, a profundidade e a verdade dos acontecimentos, pois temos de adotar determinada perspectiva e certo grau de isenção no julgamento, a fim de decifrar seu significado. Ela nos distancia estrategicamente dos acontecimentos para poder captar outro sentido, escondido neles; eles passam a ser vistos sob nova luz para serem ressignificados.
A memória nunca é experiência vazia, mas algo pleno, uma faculdade que afunda suas raízes no coração da existência. Quando evangelizada, ela nos ajuda a reler o passado sob nova luz. E só podemos “ordenar” a história quando ela é revivida diante dos olhos misericordiosos de Deus. Então, tomamos consciência que o mesmo Deus encontra mais facilidade de “entrar” em nossas vidas através dos fracassos, feridas, fragilidades… Deus “entra” no mundo pelo “avesso” da história.
Marcados pela “mística mariana”, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história. Encontrar-nos com a história significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.
Com isso, reiniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la… Uma história com rosto de futuro… e um futuro em horizonte carregado da presença divina.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: saborear o Magnificat através do “segundo modo de orar”, proposto por S. Inácio, ou seja, “contemplar o significado de cada expressão” do cântico de Maria; deixar que a simplicidade, o frescor e a profundidade das tremendas afirmações do cântico toquem seu coração.
Essa é a promessa de Deus para com seu povo, a promessa que faz Maria exultar de alegria. Essa é a promessa que Deus continua realizando em você e no mundo.
– Inspirado(a) no cântico de Maria, “trazer à memória” sua história para saboreá-la de novo, ressignificar fatos, “reciclar” acontecimentos”, “processar” vivências e experiências, e assim torná-las “companheiras de estrada” e não inimigas que travam o fluir da vida.
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).