“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5,12)
A festa de “Todos os Santos” pode ter um profundo sentido se a entendemos como convite à comunhão de todos em Deus. Não recordamos a santidade de cada um como indivíduos separadamente.
Celebramos a Santidade de Deus que se faz visível em cada um(a). Não se trata de distinguir melhores e piores, mas de tomar consciência daquilo que “há de Deus” em todos nós. Não estamos falando de nossas qualidades, mas de Deus, nossa essência, o tesouro que carregamos em vaso de barro.
Que celebramos realmente hoje? Embora a festividade litúrgica se refira aos santos e santas canonizados(as) pela Igreja, a verdade é que deveríamos ter a coragem de ir mais além e abordar em profundidade a concepção bíblica sobre a santidade para celebrar também hoje o fato inquestionável de que, por sermos criaturas divinizadas, todos somos santos e santas. Por isso, além de fazermos memória de toda a corte celestial, hoje deveríamos celebrar nosso próprio “santo” particular, não o do santo de nosso onomástico, mas o que corresponde a cada um de nós.
A única diferença entre nós e os santos canonizados, à qual a liturgia de hoje se refere, é que estes foram reconhecidos como “exemplares” por um alto tribunal da Igreja, após uma rigorosa análise de sua vida e uma prova sobrenatural de que eles dispunham da força de Deus para fazer um milagre. Mas, a realidade é que tanto eles como todos nós, que continuamos nossa peregrinação terrestre, estamos sempre com Deus, revestidos necessariamente de sua santidade. A canonização é a forma que a Igreja tem de reconhecer virtudes heroicas de alguns de seus fiéis e de apresentá-los como exemplares para que os tenhamos como referência inspiradora no seguimento de Jesus.
“Fazer memória” dos santos e santas é poder afirmar: a santidade é um modo de viver inspirado na santidade divina. Não é um atributo a ser conquistado por nossos méritos ou por nossas excelsas virtudes, mas porque em nós continua refletindo-se o rosto santo de Deus. Nossa vocação à santidade significa deixar transparecer, no nosso modo de ser e viver, a Santidade do Deus Providente e cuidadoso.
Assim celebrada, a festa de hoje se converte numa autêntica comunhão de todos, de vivos e mortos, inclusive daqueles que ainda só existem na mente e no coração de Deus, ou seja, de todos aqueles que virão depois de nós. Falamos da grande comunhão que Deus realiza com todos os seus filhos e filhas.
Deus é a graça que transborda, a bondade que se derrama, o perfume que se expande, a fonte que mana e corre em todos os seres, transformando e divinizando tudo, sem que percebamos.
Deus é a possibilidade universal da santidade, da liberdade para o bem, para a misericórdia, para a justiça.
Uma das imagens bíblicas mais potentes, por sua simplicidade e ternura, e mais antigas, é a de Deus Santo comparado com uma águia que conduz seus filhotes sobre suas asas. Em diferentes textos, a Palavra nos aproxima de uma imagem materna, a águia que conduz seus filhotes sobre suas penas e, para ensinar-lhes a voar, desce, de vez em quando, para que eles exercitem todas as suas capacidades; no entanto, ela, a águia, voa vigilante, debaixo dos pequenos, como braços sempre abertos para acolhê-los e conduzi-los.
O Deus Santo vem ao nosso encontro e, sobre suas asas, tira nossa vida dos limites estreitos e atrofiados, expandindo-a em direção a horizontes inspiradores de vida e compromisso.
O evangelho deste domingo nos revela que ser santo(a) é fazer das Bem-aventuranças a pauta de seu viver.
As bem-aventuranças constituem a carta magna do Reino e princípio fundamental do(a) seguidor(a) de Jesus para viver a sua vocação à santidade; nela aparece a visão que Jesus tinha e desejava para o ser humano.
Este texto não é apenas uma normativa, uma ética, mas um modo de entender a vida humana; elas oferecem um programa de felicidade e de esperança, ou seja, elas nos ensinam a ser ditosos, no desprendimento e na solidariedade, na pureza de coração e de vida, na liberdade radical, na esperança… tanto no nível pessoal como comunitário.
Jesus nos convida a viver uma felicidade que já está em marcha. A vida é movimento, e as bem-aventuranças possibilitam a passagem de uma vida suportada para uma vida plenamente assumida.
Nelas, Jesus nos desperta para sairmos de nossa paralisia e fixação, colocando-nos em marcha através de nossa fome e sede de justiça, através dos lutos que temos de superar e das oposições que temos de enfrentar, através da mansidão, da busca da paz, da presença compassiva…
As bem-aventuranças são um resumo das atitudes básicas que devemos nós, seguidores(as) de Jesus, ter diante dos irmãos, seguindo as pegadas de seu exemplo.
Jesus afirma que são felizes os que têm como desejo fundamental em sua vida a fome de que se cumpra na humanidade o Projeto de Deus Pai. Mas sofrem porque se dão conta de que estão longe do ideal divino. E por isso se solidarizam, visceralmente com misericórdia, com as vítimas do antirreino, mas sem violência, nem improvisações, senão com a mansidão eficaz de uma boa preparação e planejamento; e com coração puro, cheio de amor, sem manchas egoístas de interesses pessoais.
Assim se convertem em construtores da paz, essa paz de Cristo, que não é a do mundo, senão fruto da justiça de Deus. São felizes os que sabem manter-se firmes nesta atitude cristológica, apesar das oposições e perseguições que o mundo dos orgulhosos possa lhes infligir.
Estes são verdadeiramente os pobres em espírito, que optaram por ser pobres como Jesus, e por isso sabem compartilhar com seus irmãos tudo o que são e tem, e assim conseguem o cume da felicidade.
Deles é o Reino de Deus, pois eles são seriamente “filhos de Deus”.
Mas, o que mais nos surpreende é que, relendo e saboreando as nove bem-aventuranças, nos encontramos com o inesperado: nenhuma delas indica práticas relacionadas com a religião. Elas indicam condutas relacionadas com a vida, com esta vida, com as condições e atitudes a partir das quais se pode fazer algo eficaz para que esta vida seja mais humana, mais leve e mais feliz.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Ele não promulgou mandamentos, nem um código de moral, muito menos uma lista de proibições; simplesmente anunciou bem-aventuranças. Ou seja, passamos de uma ética de “deveres e obrigações” para uma ética de “felicidade e ventura”.
O famoso biblista Joaquim Jeremias disse que o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho, de tal forma que a diferença entre um e outro é esta: “A Lei põe o ser humano diante de suas próprias forças e pede-lhe que as use até o máximo; o Evangelho situa o ser humano diante do dom de Deus e pede-lhe que converta verdadeiramente esse dom inefável em fundamento de sua vida”.
Jesus compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar do Deus Santo, e para que vivamos a santidade como seres humanos, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos.
A experiência histórica nos ensina que os mandatos e as proibições têm cada vez menos força para modificar a vida das pessoas. Todo mandamento e toda proibição têm certos limites, aos quais alguém se ajusta e assunto encerrado. Enquanto a proposta da felicidade contém em si uma busca sem limites. Aqui se constata até onde chega a generosidade de uma pessoa, sua fé e a entrega a uma causa que leva a sério.
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração: rezar as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-lhe viver a dinâmica das bem-aventuranças. Viver a santidade no cotidiano é “arriscar-se” em Deus; é navegar no oceano da gratuidade, da compaixão, da solidariedade, da justiça…
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).