Nunca foi sobre um índio incendiado; éramos nós ardendo em chamas.
Nunca foi um massacre de crianças dormindo na porta da Candelária; morremos juntos com cada uma delas.
Nunca foi sobre uma distante bomba atômica; nós nos explodimos ao mesmo tempo.
Nunca foi incêndio na Amazônia; padecemos juntos a cada milímetro queimado.
Nunca foi um acidente nuclear longe daqui; nós nos infectamos e nos deformamos juntos.
Nunca foi sobre uma mulher espancada que inspirou uma lei; estamos todos paraplégicos.
Nunca foram corpos alheios soterrados pela lama criminosa; nossos poros estarão eternamente impregnados de terra.
Nunca foi um massacre num presídio; somos nós eternamente acorrentados nessas celas.
Nunca foi desaparecimento e morte na ditadura; seremos gritos à exaustão pela democracia.
Nunca foi um terremoto arrasador; éramos nós tremendo de medo e nos apegando a cada possibilidade de sobreviver.
Nunca foi trabalho análogo à escravidão; éramos nós experimentando a indignidade.
Nunca foi um rio tampado e uma nascente assoreada; somos nós morrendo de sede.
Nunca foi uma pandemia distante. Ela se fez cotidiana e arrasadora.
Somos nós!
Que este texto chegue em forma de um silencioso e indignado abraço a cada vítima da covid-19 e aos familiares e amigos enlutados.
Sintam-se irmanados na dor e, controversamente, encham-se de esperança para seguirmos adiante.
Sempre somos nós!
Maria José Brant (Deka), assistente social, analista de políticas públicas na Prefeitura de Belo Horizonte-MG, mestra em Gestão Social, mosaicista nas horas vagas.