Na quinta-feira, 3 de junho, celebramos a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, também conhecida como Corpus Christi. Mesmo nestes tempos difíceis de pandemia, fadigas e muitas restrições, a data é (a)guardada com afeto por comunidades católicas de todo o mundo. Este também é um momento oportuno para reforçar a importância da Eucaristia para a vida cristã. Sempre é bom recordar o aforismo do cardeal francês Henri-Marie de Lubac, inspirado na teologia dos padres da Igreja: “A Eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a Eucaristia”.
Dos quatro evangelhos, os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) enfocam Jesus, na chamada “Santa Ceia”, proclamando o pão e o vinho como sendo seus próprios corpo e sangue. Perdoe-me, caro leitor, cara leitora, se abordo apressadamente a narrativa desses três evangelhos, ainda mais no calor de Corpus Christi. Mas eu gostaria de destacar como o quarto Evangelho, o de João, aborda a instituição da Eucaristia.
No capítulo 13 (versículos de 1 a 15), o autor sagrado chama a olhar para um gesto ocorrido na refeição ritual, horas antes de Jesus ser entregue ao sacrifício na Cruz. A passagem começa com a base das bases de qualquer teologia eucarística séria: o amor. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (João 13,1b). Pouco mais adiante, o evangelista começa a narrar não muito a refeição, mas a atitude do Mestre, que se abaixa (em todos os sentidos) para lavar os pés de seus discípulos. Como todo o Evangelho de João, o trecho pede uma leitura atenta, sem pressa. A Eucaristia, para ele, é principalmente o serviço.
Não me atrevo a arriscar uma exegese. Partilho aqui uma modesta meditação. Espero que, aos olhos da fé, possamos identificar algumas coisas na cena na qual Jesus, mais uma vez, demonstra ter vindo a nós para servir e não para ser servido (cf. Mateus 20,28; Marcos 10,45; Lucas 22,24-27). Gestos que deveriam ser mais trabalhados em nossas catequeses eucarísticas.
Até o fim do procedimento de “purificar” os pés de seus amigos, o Senhor realiza sete atos. João, como diz o ditado, “não dá ponto sem nó”. Muitas vezes, sete, na Bíblia, é mais uma ideia do que um mero algarismo. Entre outros significados, pode indicar perfeição e, no olhar cristão, a própria encarnação de Deus (a soma de três da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo; e quatro dos elementos cósmicos: terra, fogo, água e ar). Jesus é o próprio “Sete”: o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem.
O primeiro gesto é “levantar-se”. No início, a Igreja era chamada de “O Caminho”. Como empreender esse caminho sem sair do lugar? Para servir, é preciso disposição, ânimo, entusiasmo (palavra, aliás, muito significativa).
O segundo é “tirar o manto”. Para nós, isso deveria significar despojar-nos de nossas couraças, nossos personagens, nossos privilégios, nossos títulos e servir com o que temos de mais profundo. Deus vê o escondido (Mateus 6,4b), sabe de nossas contradições e fraquezas, mas Ele nos ama e nos convoca em nossa essência.
A ação seguinte é “pegar a toalha”. Dias atrás, o Pe. Júlio Lancellotti, famoso pelo apoio aos mais necessitados, contou que Dom Luciano Mendes de Almeida, outro gigante no serviço, havia-lhe explicado sobre o significado da estola presbiteral que ele receberia na ordenação. Não transcrevo literalmente as palavras, mas era algo mais ou menos assim: atadura para curar as feridas, lenço para secar as lágrimas, toalha para enxugar os pés do irmão. A estola transversal usada por nós, diáconos, também tem esse sentido (e não um meio-sacerdócio como alguns ainda hoje pensam).
O quarto movimento nessa narrativa eucarística de João é o “cingir a cintura”. O cingir-se indicava a prontidão. A ceia pascal judaica, segundo o preceito de Moisés, devia ser tomada com os “rins cingidos, sandálias aos pés e cajado na mão” (Êxodo 12,11). A toalha em torno da cintura poderia ser parte da vestimenta típica do empregado aliada à presteza no servir, como desejou o Senhor.
O quinto gesto é o “derramar a água numa bacia”. Água, sinal de pureza, de vida, que cura nossas sequidões, elemento de nosso batismo a nos convocar a ser sinais de Cristo. É a seiva de nossa Casa Comum e de nós próprios; somos água. Com ela, o Senhor preparou seus irmãos para o grande momento da Cruz.
O sexto é o “lavar os pés dos discípulos”. O serviço em si, sem discursos vazios, sem clichês, mas a realidade de qualquer ministério que se preze. Nessa hora, Jesus resume toda a sua vida e missão entre nós, conforme diz a Carta de São Paulo aos Filipenses (2,7): “Esvaziou-se de sua glória e assumiu a condição de um escravo, fazendo-se aos homens semelhante”. Nessa hora (e em outras), Jesus, o Senhor, olha-nos de baixo para cima.
O sétimo é o “enxugar os pés”. O Senhor leva sua obra até o fim. Continua a ter seus frágeis e limitados discípulos como seus superiores e os segue vendo da perspectiva do chão. Os pés estão purificados e prontos para seguir “O Caminho”.
Mais adiante, o Senhor recorda: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (João 13,14-15). Com base em João, podemos dizer: não há Eucaristia sem também o lava-pés. O cristão ou cristã alimentado pela Palavra, o corpo e sangue do Senhor precisa, sim, colocar-se a caminho, à disposição do próximo. Creio estarem dispensados dessa missão apenas aqueles que, por motivo grave, não o podem fazer.
Servir em, com e por Cristo é um agir sacramental, não há lugar para ativismo, mas para o seguimento dos passos do Senhor. Assim é a Sagrada Ceia. E não nos esqueçamos desta ordem de Jesus: “Fazei isso em meu memorial” (Lucas 22,19b).
Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor, editor de textos para as irmãs missionárias servas do Espírito Santo.