“Junto à Cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena” (Jo 19,25)
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim…
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta… Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia… como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada…
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.
Nos relatos da Paixão de Jesus encontramos a presença das mulheres que vivem a “cruz-staurós”, ou seja, vivem a fidelidade ao seguimento de Jesus desde a Galileia. Enquanto os discípulos fogem, elas permanecem “de pé junto à Cruz”, numa atitude solidária e comprometida. A presença delas, certamente, foi um alívio para Jesus no momento trágico de sua vida: sentiu que não estava sozinho, pois suas amigas caminhavam com Ele, sofriam com Ele, morriam com Ele…
Os evangelistas nos falam das mulheres muitas vezes; o relato da crucificação revela suas presenças como testemunhas, mediadoras e verdadeiras discípulas. Os relatos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em indicar que as mulheres “contemplavam a cena de longe”. João, “que vê por dentro”, as coloca junto à cruz.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio… que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem da relação. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.
* Quem são elas? De onde tiraram forças para permanecer ali quando outros se afastaram?
* Onde estas mulheres encontraram a força para segui-Lo por este caminho do Calvário? Que faziam elas ali, junto à cruz? Realizam alguma ação eficaz? Vão poder impedir a morte de um inocente?
Algumas destas mulheres são chamadas por seu nome próprio, ou são identificadas por vínculos de parentesco, ou ainda por ter gerado e acompanhado outras vidas. São as mesmas mulheres que haviam seguido e servido a Jesus na Galileia, e agora o farão também na sua morte. Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante.
Elas têm a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.
Estas mulheres nos ensinam que “subir a Jerusalém” é assumir o conflito e a rejeição por defender os pobres e pequenos; é encontrar a perseguição devido ao compromisso em favor da vida; é saber que os grãos que caem em terra precisam morrer para germinar e multiplicar a vida.
E é, também, subir animando a outros.
Neste dia, a presença silenciosa das mulheres junto à Cruz nos ensina a compadecer, a abrir o coração e a despertar a sensibilidade solidária diante do sofrimento e da dor humanas. Nós nos humanizamos quando nos deixamos configurar pela compaixão, afetar por ela, ser tocados por ela.
E deixar que a compaixão comande nossos atos e decisões. Compaixão, padecer com: esse é o segredo da vida, vivida em plenitude. Solidarizar-nos com o outro naquela situação em que ele ou ela não nos pode retribuir, pois está reduzido apenas a uma dor sem limites, a um sofrimento sem explicações.
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-nos do ego para deixar transparecer o que há de divino em nosso interior. O grão de trigo que não morre apodrece e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presença compassiva e, à maneira das mulheres junto à Cruz, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
Isso foram as mulheres para Jesus: companheiras, solidárias, compreensivas no sofrimento. E serão elas as primeiras em experimentar e anunciar a “Vida vestida de presença”, na manhã da Ressurreição.
Texto bíblico: Jo 18,1-19,42
Na oração: somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
– “Se a semente do trigo sou eu, a que devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).