Meus olhos passeiam sobre uma linda paisagem, enquanto estou retirada para alguns dias de descanso, após um ano de trabalho intenso ao redor do tema “cultura de paz”. Cultura de paz é inseparável de ambiente saudável, garantia alimentar, educação universal e acesso a instituições eficazes e gratuitas.
Assim, refletir sobre a cultura de paz desperta as mais diversas possibilidades de explorar o tema. Poderia ser via Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 da ONU, 1 que rege sobre “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Ou com base no Relatório de Desenvolvimento Humano (IDH), publicado no início de dezembro de 2020 pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Segundo esse estudo, o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas de nações do continente africano.
O último relatório do IDH introduziu uma novidade, ao incluir emissões de dióxido de carbono e quantidade de recursos naturais utilizados nas cadeias produtivas de países, proporcionalmente às suas populações. Esse novo índice, chamado de Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado às Pressões Planetárias (IDHP), mostra a necessidade de ligar o desenvolvimento ao bem-estar das pessoas e à integridade do planeta. Para se ter uma ideia do peso desse indicador, observa-se que, quando incluídos a pressão planetária e os maus-tratos ao meio ambiente, a Noruega, que lidera a lista do IDH, perde 16 posições, e os Estados Unidos perdem 45. 2
Assim, o trabalho pela cultura de paz tem muitas facetas. Minha contribuição ao longo de 2020 foi na coordenação do projeto Rede Justiça Restaurativa, uma parceria entre o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), o PNUD, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Departamento Penitenciário. O objetivo é implantar uma política de justiça restaurativa em dez Estados, por meio dos Tribunais, na Justiça Criminal e no Sistema Socioeducativo. O foco das ações restaurativas está no assumir responsabilidade e reparar danos, mais do que na criminalização de condutas e no encarceramento.
Foi uma grata satisfação aprofundar, junto com a equipe do CDHEP, a justiça restaurativa nesses Estados. Ao longo de muitas horas de formação, todos crescemos no conhecimento e no diálogo com novas possiblidades que o arcabouço jurídico existente oferece, também em matéria criminal. Justiça restaurativa é uma possibilidade para todos os crimes, pois a cada pessoa é oferecida a oportunidade de refletir sobres seus atos, assumir responsabilidade de reparar, na medida do possível, os danos causados.
No entendimento do CDHEP, a justiça restaurativa também é uma possiblidade de restaurar vítimas de violências estruturais, o que pede uma abordagem ampla, complexa e ainda pouco usual.
Quando o PNUD inclui a pressão e os danos sobre o meio ambiente de países que parecem ou pareciam ser modelo em muitos aspectos, essas novas informações fazem com que perdem algo de seu encanto. São chamados a olhar para essa verdade, que mancha sua reputação, e reparar o dano que estão causando. É assim também a justiça restaurativa, quando olha para a desigualdade social e pede que a Constituição seja aplicada em favor de todos, de forma igual.
Restaurar o justo e instaurar o direito, no Brasil que ocupa a sétima posição de nação mais desigual do mundo, é um desafio para a cultura de paz. Ao mesmo tempo, trabalhar pela justiça e a paz é parte integral do mandato missionário das servas do Espírito Santo.
Ir. Petronella Maria Boonen (Nelly) é co-fundadora da linha de Perdão e Justiça Restaurativa do CDHEP e doutora e mestra em Sociologia da Educação pela USP.)
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1 Instituto Aurora
2 Agência Brasil