“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”
João 18,33b-37
Na Igreja Católica, hoje, último domingo do ano litúrgico, celebra-se a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Essa data foi estabelecida na época dos governos totalitários nazistas, fascistas e comunistas, nos anos antes da Segunda Guerra Mundial, para enfatizar que o único poder absoluto é de Deus. Nos dias de hoje, em que milhões padecem as consequências de um novo tipo de totalitarismo disfarçado, o do poder econômico inescrupuloso, torna-se atual a inspiração original da festa: Deus é o único Absoluto. Em um mundo que não é ateu, mas idolátrico, pois presta culto ao lucro, a festa de hoje nos desafia a revermos nossas atitudes e ações concretas, para descobrir o que é, para nós, na verdade, o valor absoluto de nossas vidas.
O texto é tirado da Paixão segundo João, o diálogo entre Jesus e Pilatos sobre a verdadeira identidade de Jesus. Com a ironia que lhe é típica, João faz com que Pilatos, o representante do poder absoluto da época, o Império Romano, apresente Jesus como rei, o que Ele é na verdade, mas não da maneira que Pilatos pudesse entender. O Reino de Jesus é o oposto do reino do Império Romano: não é opressor nem injusto, nem idolátrico, mas o Reino da justiça, fraternidade, solidariedade e partilha, o Reino do Deus da Vida.
É exatamente por pregar e semear esse Reino que Jesus deve morrer (aliás, não morrer, mas ser morto, o que é diferente). Pilatos demonstra isso quando ele deixa claro quem entregou Jesus, pedindo sua morte. Não foi o povo, mas os sumos sacerdotes que o entregaram (vers. 35). É importante entender o que isso significa, pois, se Jesus foi morto, houve algum motivo e houve alguém que o matasse. Os sumos sacerdotes eram, no tempo de Jesus, todos nomeados pelos romanos, dentro do partido dos saduceus, o partido da elite jerosolimita, donos de terras e do comércio, e chefes do Templo. O Templo funcionava como “Banco Central”, centro de arrecadação de impostos e lugar de câmbio monetário, uma vez que não se aceitava nele a moeda corrente. Jesus, portanto, foi assassinado pelo poder político, econômico e religioso, coniventes com o poder imperialista, representado por Pilatos. Pois o Reino de Deus se opõe frontalmente a qualquer reino opressor, como era o de Roma.
A realidade vivida por Jesus continua hoje. O seguimento de Jesus, na construção dum reino de justiça e paz, do shalom de Deus, necessariamente vai entrar em conflito com os reinos que dependem da exploração e da injustiça. Normalmente, esses poderes primeiro vão tentar cooptar a Igreja, para que, em lugar de ser voz profética diante das injustiças, torne-se porta-voz dos valores desses reinos. E não faltarão incentivos (monetários e outros) para que as igrejas caiam nessa cilada. Por isso, como nos advertiram os textos nos últimos domingos, é necessário que fiquemos sempre vigilantes para verificarmos se nossa vida prática está mais de acordo com o Reino de Deus ou o reino de Pilatos.
Para João, Jesus provoca a grande crise da história. Diante da verdade, que é Ele, todos têm de se posicionar. Ele, como todo profeta, não causa a divisão, mas desmascara a divisão que existe dentro da sociedade, a divisão entre o bem e o mal, entre um projeto da morte e um projeto da vida, uma divisão que permeia todos os elementos da sociedade. Diante dele, não há lugar para meio-termo: todos têm de optar. Por isso, nossa festa de hoje, longe de ser algo triunfalista, desafia-nos a fazermos um exame de consciência, tanto individual como eclesial e comunitário, para verificar se nosso Rei é realmente Jesus ou se, mesmo duma maneira disfarçada, continua sendo Pilatos.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.Pe. Tomaz Hughes, SVD