“Todos ficaram repletos do Espírito Santo”
Atos dos Apóstolos 2,1-11
A liturgia de hoje nos descreve a descida do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos, em duas tradições: a de Lucas (Atos dos Apóstolos) e a da Comunidade do Discípulo Amado (João 20). Salta aos olhos que uma leitura fundamentalista da Bíblia (infelizmente ainda muito comum entre nós) leva a gente a um beco sem saída, pois, no Evangelho de João, a Ressurreição, a Ascensão e a descida do Espírito se dão no mesmo dia (a Páscoa), enquanto Lucas separa os três eventos, dentro de um período de cinquenta dias. Por isso devemos ler os textos dentro dos interesses teológicos dos diversos autores: os 40 dias de Lucas, por exemplo, entre a Ressurreição e a Ascensão, correspondem aos 40 dias da preparação de Jesus no deserto, para a sua missão. Pois, como Jesus ficou “repleto do Espírito Santo” (Lucas 4,1) e se lançou na sua missão “com a força do Espírito” (Lucas 4,14), a comunidade cristã se preparou durante o mesmo período e, na festa judaica de Pentecostes, também experimentou que “todos ficaram repletos do Espírito Santo” (Atos dos Apóstolos 2,4).
Uma leitura superficial do texto de Atos dá a impressão de um relato uniforme e coeso, mas isso se deve à habilidade literária do autor. Na verdade, ele costurou um relato só, tecendo elementos de duas tradições. Uma leitura cuidadosa nos mostra essas duas tradições: a primeira está nos versículos 1 a 4, uma tradição mais antiga e apocalíptica; a segunda está nos versículos 5 a 11, mais profética e missionária.
Nos primeiros versículos, estamos no ambiente de uma casa, onde os discípulos se reuniram. Atos nos faz lembrar que estavam reunidos três grupos distintos, os Onze, as mulheres (entre as quais Maria, a mãe de Jesus), e os irmãos do Senhor. Embora talvez representem três tradições cristológicas diferentes no tempo de Lucas, ele faz questão de enfatizar que todos estavam reunidos com “os mesmos sentimentos e eram assíduos na oração” (Atos 1,14). Quer dizer, a descida do Espírito não é algo mágico, mas consequência da unidade na fé e no seguimento do projeto de Jesus.
O primeiro relato (versículos 1 a 4) usa imagens apocalípticas, símbolos da teofania, ou da manifestação da presença de Deus: o som de um vendaval e as línguas de fogo. A expressão externa da descida do Espírito é o “falar em outras línguas” (não o “falar em línguas” – glossolalia – tão valorizado por muitos grupos de cunho neopentecostal).
A segunda tradição muda o enfoque. O ambiente muda da casa para um lugar público, provavelmente o pátio do Templo. O sinal visível da presença do Espírito não é mais o falar em outras línguas, mas o fato de que todos os presentes possam “ouvir, em sua própria língua, os discípulos falarem” (Atos 1,6). O termo “ouvir” aqui implica também “compreender”. Por três vezes, o relato destaca o fato de os presentes poderem “ouvir” em sua própria língua (versículos 6, 8, 11). Assim, Lucas quer enfatizar que o dom do Espírito Santo tem um objetivo missionário e profético: de fazer com que toda a humanidade possa ouvir e compreender a nova linguagem que une todas as raças e culturas, ou seja, a do amor, da solidariedade, do projeto de Jesus, do Reino de Deus.
A lista dos presentes tem um sentido especial: estão mencionadas raças, áreas geográficas, culturas e religiões. Todos ouvem as maravilhas do Senhor. Assim, Lucas ensina que a aceitação do Evangelho não exige o abandono da identidade cultural. Contesta a dominação cultural, ou seja, a identificação do Evangelho com uma cultura específica. Durante séculos, esse fato foi esquecido nas Igrejas, e identificava-se o Evangelho com sua expressão cultural europeia. Nos últimos anos, a Igreja tem insistido muito na necessidade da “inculturação”, de anunciar e vivenciar a mensagem de Jesus dentro das expressões culturais das diversas raças e etnias. O texto é uma releitura da Torre de Babel, onde a língua única era o instrumento de um projeto de dominação (uma torre até o céu!) que foi destruído por Deus pela diversidade de línguas. Nenhuma cultura ou etnia pode identificar o Evangelho com sua expressão cultural a respeito dele.
Hoje é uma grande festa missionária. Marca a transformação da Igreja de uma seita judaica em uma comunidade universal, missionária (mas não proselitista), comprometida com a construção do Reino de Deus “até os confins da terra”. Lucas insiste que a experiência de Pentecostes não se limita a um evento; é uma experiência contínua, por isso relata novas descidas do Espírito Santo: em uma comunidade em oração, dentro de uma casa (Atos 4,31); sobre os samaritanos (Atos 8,17); e, para o espanto dos judeu-cristãos ortodoxos, sobre os pagãos, na casa de Cornélio (Atos 10,4). Pois o Espírito Santo sopra onde quer, sobre quem quer, em favor do Reino de Deus. Aprendamos do texto de Atos e celebremos nossa vocação missionária, não a de falar em línguas, mas a de falar a língua única do amor e do compromisso com o Reino, para que a mensagem do Evangelho penetre todos os povos, culturas, raças e etnias.
Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.