“Vós sois a luz, vós sois o sal…”
O evangelho deste domingo é a conclusão das bem-aventuranças, proclamadas no domingo passado.
Jesus faz uma afirmação lapidar: “vós sois o sal, sois a luz”. O artigo determinado nos adverte que não há outro sal, que não há outra luz. Todos têm direito a esperar algo de nós. O mundo dos cristãos não é um mundo fechado e à parte. A salvação que Jesus propõe é a salvação para todos. É preciso que a única história, o único mundo fique temperado e iluminado pela vida daqueles(as) que seguem a Jesus.
Mateus nos traz uma mensagem de muita transcendência para o discipulado. Este texto pertence ao Sermão da Montanha no qual transparece a intenção de Jesus de construir uma nova comunidade, aquela que decide pertencer ao movimento de vida iniciado por Ele, identificando-se com o modo de ser e viver do Mestre da Galiléia. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores(as): ser presença que ilumina e dá sabor à realidade carregada de tantos conflitos e divisões.
A originalidade desta nova comunidade não está centrada na pertença a uma nova religião, com seus ritos, leis, doutrinas, hierarquias…, mas no fato de prolongar o movimento humanizador iniciado por Jesus. Movimento de inclusão de todos, movimento que põe em questão toda forma de submissão, movimento que abre um horizonte de esperança e de vida.
É importante destacar que as palavras de Jesus dirigidas ao discipulado não são uma promessa, mas uma realidade existencial, porque lhes diz que já são “sal da terra” e já são “luz do mundo”. Ele utiliza estas duas imagens para que todos compreendam que estão equipados de sabedoria e luz para iniciar este caminho.
O sal não tem valor para si mesmo, mas para conservar e dar sabor, para diluir-se no processo da vida da terra. Não somos sal para nós, para um pequeno grupo, mas sal para a terra inteira.
Ser luz… Tampouco a luz tem valor em si mesma, mas para iluminar os outros.
Devemos cair na conta de que Jesus não pede para salgar ou iluminar, mas ser sal, ser luz. O matiz tem sua importância. A missão fundamental de cada um está dentro dele mesmo, não fora. A preocupação de cada um deve ser alcançar a plenitude humana. Se é sal, tudo o que ele toca ficará temperado. Se é luz, tudo ficará iluminado ao seu redor. Com demasiada frequência o cristã acredita ser sal e luz, mas sem dar-se conta de que perdeu toda capacidade de dar sabor e iluminar a vida, porque é sal insosso e luz tímida.
O simbolismo do sal aqui é extraordinário: ele não pode salgar a si mesmo. Sua capacidade não lhe é útil para nada. Mas é imprescindível para os outros. É para ser acrescentado a outro alimento, é para ressaltar seu sabor. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. Ele garante o sabor, com a condição de que se dissolva.
O sal serve para ativar o sabor dos alimentos; não é o sal que “dá sabor”, mas é ele que realça o sabor de cada alimento. As palavras “sabor” e “sabedoria” tem a mesma raiz do verbo latino: “sapere”, que significa, ao mesmo tempo, tanto “saber” quanto “ter sabor”. Assim como está o sabor para os alimentos, também está o sabor da vida.
Sabedoria rica e nova: o coração é “sábio” quando sabe “saborear a verdade”, quando é livre, quando intui a direção da própria existência, quando se sente “seduzido” pelo que é verdadeiro, bom e belo.
Saber é experimentar o gosto das coisas. Saber é sentir o sabor.
“Sapiencia” quer dizer conhecimento que tem sabor. Segundo a Anotação 2 dos EE, “não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente”.
Portanto, sabedoria é a arte de degustar, distinguir, discernir…
O sábio é aquele que conhece, não com a razão, mas sente o gosto daquilo que já está dentro dele.
Sábia é a pessoa que sintoniza atentamente seus ouvidos aos desejos do coração.
“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” (T.S. Eliot).
A verdadeira sabedoria, portanto, nos ajuda a descobrir a profunda raiz da vida e como investir, da melhor maneira e em sua justa medida, nossas energias vitais. Mas, há um forte alerta: “se o sal perde seu sabor, com que se salgará?” Esta frase é um provérbio usado na literatura rabínica pois se refere a um sal extraído do mar Morto e que perdia seu sabor muito rapidamente. Agora, Jesus situa o discipulado diante de uma grande responsabilidade: a inutilidade de uma fé centrada na razão e não vivida a partir da profundidade humana. Viver o seguimento a partir de uma fé focada na doutrina gera ideologia; mas, quando é vivida como raiz existencial gera sentido para chegar a ser o que somos em potencialidade.
O tema da luz é muito frequente na Bíblia. Partindo de um dado experimental, descobre-se sua importância para o desenvolvimento da vida. Não só porque a luz é imprescindível para a vida, mas porque o ser humano não pode desenvolver-se na escuridão. Daí que a luz tenha se convertido no símbolo da vida mesma e de tudo o que a rodeia. Assim como a escuridão se converteu no símbolo da morte e de tudo o que a provoca.
A escuridão nos paralisa; tudo está aí, mas não podemos nem nos mover. A pequena luz põe as coisas em seu devido lugar, nos faz capaz de contemplar a beleza presente em tudo. É como o primeiro momento da Criação: “Faça-se a luz”, e a partir daí o caos foi se transformando em cosmos.
Quem segue Aquele que é a Luz, reacende a faísca de luz dentro de si e se torna reflexo da Luz de Cristo.
A vida inspirada pelo seguimento é um “caminhar na Luz”.
“Deus é luz e nele não há treva alguma” (1Jo 1,5). Deus revela, potencializa, ilumina, dá sabor. A pessoa que vive descentrada de si mesma torna-se um canal por onde passa a mesma luz divina. Não a impede, não a retém e nem se apropria dela, mas permite que a Luz divina ilumine tudo.
Ser luz, significa explorar nossas possibilidades humanas e espirituais e pôr toda essa riqueza a serviço dos demais. Devemos ter cuidado de iluminar, sem deslumbrar.
Ninguém é “a” luz, senão que tem um pouco de luz. E todos compartilhamos mutuamente a luz que vem de Deus. Nossa pequena luz reforça e ativa a luz presente no outro.
A vida do(a) discípulo(a) transcorre em meio a um contínuo discernimento para encontrar a medida justa de sal/sabor e a medida justa de luz. Um excesso de sal torna intragável qualquer alimento, um excesso de luz nos cega. Às vezes, o discipulado se vê envolvido em um ego que expele um excesso de sal até afastar os comensais. Assim também, um excesso de luz faz permanecer na sombra àqueles a quem ela se dirige.
Do mesmo modo, uma dose menor de sal gera uma falta de sabor que dilui o sentido original ou a pouca luz gera um ambiente sombrio e frio. É a tibieza de um discípulo que não se atreve a viver com inspiração esta mis-são, porque suas raízes se desconectaram da fonte e ele se reduz a cumprir alguns ritos ou normas, sem viver uma profunda identificação com Jesus.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Para Meditar: Rezar sua presença e sua atuação na realidade cotidiana e no encontro com os outros.
“Ser sal” e “ser luz” significa vida descentrada, oblativa e servidora. Lembre-se: o sal, para salgar, tem de desfazer-se, dissolver-se, deixar de ser o que era. A lamparina ou a vela produzem luz, mas o azeite ou a cera se consomem.
Seguir Jesus é deixar que a Luz d’Ele transpareça em sua vida; o carvão e o diamante são feitos da mesma matéria: tem a mesma composição química.
No entanto, o carvão afoga a luz, enquanto o diamante a faz resplandecer.
– Você é carvão ou diamante no seu “existir cristão”?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).