“Tu és pedra, e sobre esta rocha eu construirei minha Igreja” (Mt 16,18)
O evangelho deste domingo nos situa num destes momentos em que Pedro, com sua habitual ousadia e rapidez, responde à pergunta que Jesus lhes dirige sobre sua identidade: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Diante da pronta confissão, Jesus o chamou, em hebraico, “Kephas”.
O texto grego usa duas expressões: “petros” e “petra”. Simão é por si mesmo um “petros” (pedregulho, cascalho), mas, através de sua confissão messiânica, afirmando que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, ele realizou uma missão essencial no princípio da Igreja; assim, o mesmo Jesus acolheu esta profissão de fé e lhe chamou bem-aventurado (“makarios”), acrescentando que sobre a rocha da confissão de Pedro (“petra”) edificará sua Igreja.
Por ter recebido uma revelação muito alta de Deus, o próprio Simão que em si mesmo é “petros” (pedra movediça, incapaz de ser alicerce) se converte, de maneira muito profunda, em Petra/rocha firme, revelando-se o alicerce da nova comunidade. O texto distingue e vincula assim duas palavras fundamentais: a) Petros (Pedro masculino), pedra-cascalho do caminho; b) Petra (rocha, feminino), na qual se expressa a revelação do Pai (“não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu”).
A realidade de Pedro está vinculada à sua história familiar, ao mundo conhecido ao qual pertence, à sua personalidade: é Simão (“petros”). No entanto, o olhar intenso e profundo de Jesus vai mais além, “perfura” essa realidade, descobrindo em Pedro a sua verdadeira identidade para o qual foi chamado a ser, ao se abrir à Graça: é “Petra” (Cefas). A missão para a qual foi chamado a ser, Pedro ainda não a conhece, mas é um dom que lhe foi dado já desde antes de nascer.
A acolhida de Jesus se expressa na palavra de verdade oferecida e não imposta, uma palavra que o leva a dialogar consigo mesmo e a aprofundar: “Tu és ‘petros’ e sobre esta ‘Petra’ construirei a minha Igreja”.
Pedro aparece, então, como o primeiro discípulo que manifesta sua fé pessoal em Jesus. E o evangelho faz um convite para que cada pessoa, cada seguidor(a), expresse para si mesmo qual é sua fé em Jesus.
Como consequência, essa mesma fé, que aflorou na primeira comunidade cristã, é a que emerge e se prolonga, ao longo dos séculos, em cada seguidor(a) de Jesus, com sua fortaleza (petra-rocha) e, ao mesmo tempo, com sua fragilidade (petros-pedra); sem dogmatismos nem doutrinas, mas com a modesta manifestação de alguém que se sente interpelado e animado pelo modo como Jesus viveu e pelos estímulos que Ele lhe deu para caminhar na direção da nova humanidade.
Por isso, continua sendo decisiva a pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. No entanto, não basta ter uma ideia clara sobre Ele ou um conceito teológico apurado, mas viver uma relação que se expressa como adesão a um estilo de vida cristificado.
O seguimento de Jesus não é questão de razão ou um profundo conhecimento da cristologia; é questão de sedução, de atração, de paixão… Só podemos responder à sua pergunta com o coração. Se a pessoa de Jesus – seu modo de ser e viver – não provoca um impacto afetivo em nosso interior, o seguimento vai se tornando estéril e sem maiores implicações na vida.
A pergunta sobre “quem é Jesus para nós” é fundamental para radicalizar nosso seguimento, e é fundamental para entendermos a nós mesmos; cada um precisa se situar de maneira única e original diante da mesma pergunta feita a todos. Em muitas ocasiões as perguntas nos ajudam a avançar mais que as nossas próprias respostas. As “perguntas existenciais” são provocativas e mobilizadoras, pois sacodem nossas vidas e despertam os recursos mais nobres que carregamos em nossa interioridade.
Por isso, a pergunta por Jesus se volta a nós mesmos; perguntar por Jesus é perguntar por nós mesmos. Nesta rede de perguntas e respostas o que está em jogo não é tanto a identidade de Jesus, mas a nossa identidade de seguidores(as) seus(suas). No centro das perguntas que nos fazemos na vida vão surgindo respostas com as quais vamos configurando nossa existência, identificada com a vida de Jesus.
Mas hoje, talvez num gesto de ousadia e atrevimento, poderíamos inverter as perguntas. No Evangelho, é Jesus quem pergunta e nós respondemos; agora somos nós que fazemos as perguntas a Jesus. Se Ele está interessado em saber o que os outros pensam dele, também nós estamos interessados em saber o que ele pensa de nós:
“Senhor, que dizes, que pensas de mim?” “Senhor, que pensas e dizes de mim como batizado(a) e teu(tua) seguidor(a)?” “Sou realmente essa imagem do(a) homem/mulher novo(a) nascido(a) de tua Páscoa?” “Senhor, que pensas e dizes de mim como: jovem? adulto? cristão/ã? trabalhador(a)…?”
“Senhor, Tu, que pensas de mim como pessoa? Porque tu me deste a vida não para que a conserve atrofiada, mas para que me realize humanamente e chegue a ser uma pessoa livre, madura e comprometida. Tenho amadurecido no amor, chegando a ser essa pessoa que Tu esperas de mim?”
Talvez, de início, possamos sentir um pouco de medo da verdade que Ele dirá sobre nós. Mas, pensando bem, podemos concluir que Jesus pensa melhor sobre nós que nós sobre Ele. E se nos dá vergonha responder às suas perguntas, certamente que Jesus não sentirá vergonha alguma em responder às nossas.
Ao responder nossas perguntas, Jesus nos faz ter acesso àquilo que é o fundamento, a rocha sobre a qual construímos nossa vida. Assim como Ele respondeu, afirmando a verdadeira identidade de Pedro, podemos afirmar que “petros” é o que em nós é fragilidade, incoerência, vulnerabilidade, limitação… “Petra”, ao contrário, é o que é sólido, firme, consistente, sobre o qual fundamentamos a vida. “Carregamos um tesouro em vaso de barro” (2Cor 4,7). Como seres humanos, vivemos a integração de “petros” e “petra”.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis resistências na vivência do seguimento de Jesus. O “eu profundo” constitui-se como um centro sólido, consistente e estável de nosso ser, radicalmente diferente das experiências fluidas que o atravessam. Existem camadas sólidas da experiência do “eu” que devem se contrapor às experiências passageiras de sentimentos vazios, desejos periféricos, sonhos sem paixão.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar a crescer dia a dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, olugar das riquezas pessoais, onde vivemos o melhor de nós mesmos, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde brotam as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da nossa vida.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato com a nossa rocha interior. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes… nós nos esvaziamos, nos diluímos, perdemos a interioridade e… nos desumanizamos. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas… (cf. Bauman).
Diante desta “cultura líquida”, é urgente gerar espaços que facilitem o acesso à rocha da interioridade, possibilitar o retorno à “base interior” onde é gestada a nossa identidade e as nossas opções mais firmes.
Somos um mistério no meio de mistérios, em um mundo de surpresas e de assombros.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: muitos caminhos conduzem à nossa própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus nos habite para que possamos abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles que encontramos. Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício do medoque desumaniza.
- Deixe que a “chave” da oração abra as portas do seu coração e mostre todos os seus tesouros escondidos nas arcas de seu interior. Permita que a “petra” de sua existência brote com leveza das profundezas de seu ser.
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).