“Todos os Santos” ou “todos santos”?

“Bem-aventurados sois…”

A inspirada festividade deste domingo nos convida a deixar aflorar uma verdade referente à santidade que celebramos. No “Glória” da missa católica, professamos, referindo-nos a Deus: “Só Vós sois o Santo…”; estamos proclamando um atributo divino que nos afeta a todos, não de uma rica joia que só os privilegiados herdarão. Fomos criados à imagem e semelhança do “Deus Santo” e trazemos em nós a “faísca da santidade divina”, que quer se expandir. 

Nós nos tornamos santos(as) à medida que abrimos espaço em nossas vidas para Deus se manifestar em sua santidade. A verdade última, a mais consistente e sólida, é que não somos santos(as) por nós mesmos, mesmo que derramemos todo nosso sangue por defender nossa fé e gastemos nossas vidas em benefício de nossos irmãos, mas porque, em nossa vida, Deus deixa transparecer seu rosto, impregnando-nos de sua santidade. Não conquistamos nossa santidade por meritocracia, por esforço pessoal, mas por pura gratuidade. Ser transparência da santidade de Deus é a suprema vocação de todos nós.

Em outras palavras, somos santos(as) porque é Deus mesmo quem nos criou e nos colocou, com muito carinho, neste mundo, para sermos presenças visíveis da sua eterna santidade.

Na festividade de “Todos os Santos”, cabem todos(as); aqueles(as) que, na glória eterna, já estão no coração de Deus; e todos nós que, durante este percurso de vida, fazemos das Bem-aventuranças a pauta de nossa conduta cristã.

Surge, então, a imagem de um(a) santo(a) que é filho(a) do momento e da situação presente, cuja atuação se dá no mundo em que está encarnado. O(a) santo(a) é aquele que, na “loucura santa”, revela uma pulsação de vida para com o mundo; é um biófilo (amigo da vida); é um(a) co-operador(a), agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus dita na e pela situação cotidiana.

Não é o trivial ou o excepcional que distingue a santidade de cada pessoa: o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação concreta de cada dia.

Ser santo(a), portanto, é sermos dóceis para “deixar-nos conduzir” pelos impulsos de Deus, por onde muitas vezes não sabemos e não entendemos. Seus caminhos não são os nossos caminhos.

Assim, nós cristãos honramos a santidade universal, sem fronteiras de raça, de credo, de cultura… Nesse sentido, a santidade excede os limites da Igreja católica, porque o Espírito derrama seus dons sem medida e suscita sinais de sua presença em todos e em tudo. E que sinal da presença do Deus Santo é mais eloquente que a vida, o amor, a plenitude ou a felicidade? E, talvez, deixar ressoar em nós o “somos todos santos(as)”, como um apelo a ser vivido no presente e não como uma promessa de futuro.

Diante disto, vamos nos deixar surpreender mais uma vez pelo evangelho indicado para a festa deste domingo e descobrir-nos “bem-aventurados(as)”, chamados(as) a ser felizes, a abrir espaço para que cada bem-aventurança fique gravada no mais profundo de nosso ser, iluminando nossa existência e deixando transparecer o rosto santo de Deus.

Como podemos viver diariamente as bem-aventuranças proclamadas por Jesus? Quem se encontra frequentemente com elas tem consciência de que seu conteúdo é inesgotável; sempre tem ressonâncias novas; sempre encontramos nelas uma luz diferente para o momento que estamos vivendo; elas se revelam sempre inspiradoras para o nosso modo de ser e viver.

As bem-aventuranças não são uma teoria, nem leis mais sofisticadas ou um plano que brota de nossa mente; em primeiro lugar, elas são a melhor descrição de quem foi Jesus e como Ele viveu; ao mesmo tempo, elas são a revelação do que há de melhor em nosso interior. Elas desvelam nossa verdadeira identidade, nossa essência humana.

“As bem-aventuranças são a carteira de identidade do cristão, que o identifica como o seguidor de Jesus”, afirma o papa Francisco. Se quisermos saber o que Jesus nos propõe para sermos felizes, para vivermos com mais intensidade e sentido, para realizarmos o sonho que Deus Pai-Mãe teve ao nos criar, encontraremos nas bem-aventuranças o manual de instruções. Se as seguirmos, seremos ditosos, benditos e iremos nos aproximando de nossa plenitude humana e divina.

A proclamação das bem-aventuranças é o prelúdio, a essência do estilo de vida que Jesus, o Bem-aventurando por excelência, que propõe o mesmo para toda a humanidade, independente de credo, raça, condição social… É a síntese da proposta vital que Jesus oferece à humanidade sedenta de sentido e necessitada de um projeto inspirador para orientar suas aspirações existenciais e a vivência da felicidade (plenitude) que tanto busca. O que Jesus oferece é um modo de ser e viver para ser feliz. Isso é justamente aquilo que a humanidade, em todo momento e lugar, tanto deseja.

Jesus é para nós o revelador de Deus e o revelador do ser humano. Nas bem-aventuranças, Ele nos revela o plano de salvação (libertação, felicidade, plenitude) que Deus propõe para a humanidade inteira, em todo tempo e lugar. Deus nos criou a todos para que sejamos felizes, aspiração latente no interior de cada pessoa. Jesus, nas bem-aventuranças, nos mostra o caminho para viver com mais intensidade e plenitude.

O evangelista Mateus situa a proclamação das bem-aventuranças como abertura do “discurso evangélico” (caps. 5, 6 e 7). E a primeira coisa que ele faz é descrever com detalhes o cenário onde se situa este discurso. Com isso, o que ele pretende é preparar-nos para escutar algo muito solene e muito importante: a multidão numerosa, a subida ao monte, Jesus sentado como o Mestre, os discípulos que se aproximam para não perder nada do que vai ser dito, o início solene da proclamação do discurso. Como bom mestre, Jesus apresenta o programa que Ele vai desenvolver ao longo de toda sua vida. Ao mesmo tempo, o programa de vida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).

As bem-aventuranças são um retrato, um perfil do estilo de vida que Jesus assumiu e deseja que todos o assumam da mesma maneira. Como perfil, elas concretizam as características desse estilo de vida: partilha, mansidão, compaixão, justiça, misericórdia, humildade, coerência, abertura, proximidade, serviço… Em suma, as bem-aventuranças descrevem o perfil de uma “pessoa integrada”, de uma pessoa “muito humana”, pois elas revelam aquilo que é mais humano, e que está presente no mais profundo de cada um. Quem vive este perfil é feliz, ditoso, bem-aventurado. E a razão desta felicidade é porque nisso encontramos a Deus e fazemos parte de seu Reino.

Neste tempo de profundas divisões e conflitos entre as pessoas, neste tempo de dor e de ódio, neste tempo de desesperança e solidão, as bem-aventuranças nos ajudam a semear sementes de alegria, de paz, de mansidão, de compaixão…, porque são a grande força que temos para transformar a Igreja e o mundo.

As bem-aventuranças nos fazem ver que, mais que ciência e tecnologia, precisamos de mais humanidade, ternura, bondade, compaixão…, pois sem esses valores a vida se desumaniza. Por isso, as bem-aventuranças nos ajudam a viver com as mãos abertas e o coração solidário, e nos anima a rejeitar o cinismo que reina em nossa vida ecológica, política, econômica e social.

As bem-aventuranças, portanto, vão muito mais além de tudo o que os mandamentos significam; elas não se fixam em alguns limites que não podem ser transgredidos, mas marcam algumas metas que nunca chegaremos a alcançar em plenitude. Não são a negação que estabelece o que não se pode fazer, mas a afirmação que nos dá vida e nos deixa profundamente felizes.

Por não serem leis, nem mandamentos, as bem-aventuranças não despertam sentimento de culpa. Pelo contrário, são fonte da perene alegria: alegria oblativa, carregada de compaixão, descentrada…

Texto bíblico: Mt 5,1-12

Na oração: repassar, pausadamente, cada uma das bem-aventuranças, contemplando o significado de cada palavra nascida do coração de Jesus.

– Em que medida elas se fazem presentes em sua vida? Há alguma bem-aventurança ainda “escondida” em seu interior, e que precisa ser ativada, para crescer na identificação com Jesus Cristo?

– Sua vida está centrada na vivência das bem-aventuranças (essência da vida cristã) ou ela se reduz a um mero cumprir alguns ritos vazios, algumas devoções egoicas, algumas práticas penitenciais estéreis…?

 

Padre Adroaldo Palaoro, SJ

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).

 

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