Em uma sociedade não violenta, e neste texto preferirei o termo menos violenta, parece-me importante compreender não apenas aspectos individuais que compõe uma pessoa violenta neste século XXI, como estresse, impaciência, ansiedade e mais. Prefiro entender a violência como algo que fala também, e principalmente, de relações humanas. Como quem afirma que “não se é violento sozinho, mas na relação com o outro”. Ou seja, existem aspectos econômicos, sociais, culturais que se referem à relação de um humano com outro que também podem contribuir na composição de uma pessoa violenta. Assim, vou destacar dois tipos de violência que costumam causar grande comoção social, a violência contra mulher e a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os dados das duas últimas edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018 e 2019), que faz um levantamento dos registros de boletins de ocorrência das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e, ou, Defesa Social de todos os Estados e do Distrito Federal, mostram que o número de vítimas de feminicídio (quando o homicídio de uma pessoa ocorre por ela ser mulher) no Brasil aumentou de 929, em 2016, para 1.206, em 2018. Isso equivale a dizer que três mulheres são vítimas de feminicídio por dia no País. E o número de registros de lesão corporal dolosa, considerada como violência doméstica (a violência que ocorre dentro da casa da vítima), foi de 194.273, em 2016, para 263.067, em 2018, o que equivale dizer que, a cada dois minutos, uma mulher foi vítima de violência doméstica no Brasil. Sabe-se que, em se tratando de feminicídio, em 88% dos casos, o autor foi o companheiro ou ex-companheiro da vítima, conforme índices de 2018.
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A última edição do Anuário destaca o perfil dos estupros no Brasil e indica que esse crime aumentou de 43.869, em 2011, para 66.041, em 2018, sendo 63% destes considerados estupros de vulneráveis, ou seja, praticados contra crianças ou adolescentes. A faixa de idade mais vitimada foi a de 5 a 13 anos.
Em comum, na maioria dessas violências, não está apenas o fato de serem contra mulheres ou meninas, ou de serem praticadas por homens, mas também de ocorrerem na casa da vítima e efetuadas por homens de sua confiança, que lhes deviam afeto ou mesmo cuidado, no caso de crianças e adolescentes. Por isso parece importante que, ao refletir sobre essas violências, e em uma sociedade menos violenta, consideremos como o homem deste século exerce sua masculinidade.
Nós, homens, crescemos aprendendo, ou melhor, ouvindo que “em mulher não se bate nem com uma pétala de rosas”. Buscaram nos ensinar a cortejar a mulher, oferecer-lhe flores, abrir-lhe a porta do carro. A sociedade se responsabilizou em ensinarmos que a mulher é mais frágil, e por isso cabe ao homem protegê-la. E mesmo quanto a crianças e adolescentes, essa mesma lógica se estende, e o homem assume a responsabilidade de chefe de família, responsável pela provisão da casa. Assim se constrói a masculinidade, quase que como um contrário da feminilidade da mulher: homem forte, mulher fraca; homem valente, mulher medrosa; homem bruto, mulher dócil; o homem poderoso, mulher submissa.
Sem saber dos números de violência aqui descritos, a filósofa Simone de Beauvoir e outros pensadores já defendiam que a masculinidade desta época foi ensinada não apenas como diferente da feminilidade, mas sim como superior a ela. Por isso o homem que é fraco, medroso, dócil ou submisso é chamado de “afeminado”. Ele é menos homem e por isso ele “perde seu valor” diante da sociedade machista. E essa reflexão tem tudo a ver com as violências descritas, pois dizem do lugar que a mulher ocupa em relação ao homem: um lugar de desigual, de menor valor.
Por isso não basta nos chocarmos com os inúmeros casos, e digo isso porque os dados aqui apresentados são apenas com relação aos registros de boletim de ocorrência e não se referem às violências que ocorrem, há anos, em absoluto sigilo, no ambiente privado dos lares. Precisamos reconhecer que a masculinidade deste século precisa se reinventar, talvez não sobre o princípio da superioridade sobre a feminilidade, mas sim considerando as simples diferenças, não na concorrência, mas na cumplicidade entre elas. Uma nova masculinidade que vá, de fato, no sentido de uma sociedade menos violenta.
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Everton Borges, assistente social no Projeto Construindo Novos Valores, do Instituto Novos Valores.
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