Vida e morte: realidades da mesma existência

“Para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada.” Esse trecho, retirado do Prefácio dos Fiéis Defuntos I, pode ser visto em algumas lápides cristãs mundo afora. A relação vida-morte-vida é um dos fundamentos de nossa fé cristã. Para os seguidores de Jesus, não é possível separar esses eventos, e precisamos ser vigilantes para aprender as lições que elas têm a nos dar.

Ainda me inspirando na liturgia, destaco um episódio único da vida: o dia de nosso batismo. A celebração desse sacramento é carregada de símbolos riquíssimos que remetem a Cristo, no qual somos mergulhados, enxertados, configurados.

Conforme o costume em muitos lugares, no caso do batismo de crianças, o rito inicia-se com o bebê nos braços da mãe. Tal como fez Maria em relação a Jesus (Lc 2,22-32), a mulher apresenta a Deus e à comunidade o fruto de seu ventre, de seu do coração. Após consagrar o rebento ao Criador, no fim da celebração, quando a criança já está inserida no corpo de Cristo, ocorre a bênção solene. Reza-se pelo neófito, pelos pais, padrinhos, pelos outros presentes. Nessa hora, novamente a criança está no colo da mamãe. É como se Deus dissesse: “No ventre, no coração, você gerou esta preciosa criança e a consagrou a mim, agora eu a devolvo a você e lhe dou a missão de cuidar dela para mim”.

Existe uma bela relação do batismo com as exéquias (ritos fúnebres). Além da presença da água, com a qual o corpo e o túmulo são aspergidos, há a prece da “encomendação”, quando a família, os amigos e a comunidade entregam, devolvem a Deus a pessoa querida. Um emocionante, não raro difícil, ofertório, pelo qual colocamos nas mãos do Senhor tudo o que aquela pessoa representou em nossa história: as vitórias, as fraquezas, as alegrias, os assuntos interrompidos, as broncas, os frutos de sua missão nesta terra. E o Deus misericordioso acolhe, na vida plena, o filho ou a filha tão amada.

Os vivos e os mortos para o cristianismo

Para o cristianismo, o olhar sobre a vida e a morte costuma ser bem deferente. Quando oramos em favor de alguém que já se foi, não estamos nos referindo a mortos. Segundo nossa fé, trazemos ao coração pessoas vivas, irmãos e irmãs que estão em outra realidade (veja novamente a frase litúrgica a abrir este texto).

Há, por outro lado, muitos “mortos” perambulando por aí. À primeira vista, parecem até vivos e “bem de vida”. Estão de pé, conversam, comem e bebem, até compram e vendem. Entretanto, a todo instante, maquinam um modo de promover a violência, a injustiça, a discórdia; enfim, mais morte. Estar nas trevas é a morte.

Podemos também trazer dentro de nós experiências alternadas de morte e de vida. Quem nunca se deparou, já no fim do dia, com um arranhão ou um hematoma no corpo? Onde nos ferimos? Por que nem notamos nossas próprias feridas? Qual de nós presta atenção à própria respiração, sentindo o prazer de nutrir-se do sopro vital nos dado como graça? Onde estávamos em nossos instantes de morte e vida? Quantas vezes, pelo pecado, nós nos afastamos de Deus? Como o joio e o trigo, portamos a vida e a morte, ciscos e travas, sempre mais fáceis de apontar quando é no outro.

Não é demais recordar: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10b). Não interessa tanto ou quanto tempo estaremos por aqui, mas o como, mesmo nos arranhões de nossos dias.

Pendências

Na década de 1990, ajudei a produzir uma reportagem sobre a morte. Não me estranhem, mas confesso: foi um dos trabalhos mais marcantes de minha carreira profissional. Uma pena, mas não recordo bem os detalhes dessa matéria, mas ficou marcada para mim uma pergunta feita por um tanatólogo, profissional especializado no fenômeno vida-morte: se eu receber a notícia de que morrerei daqui a quinze minutos, como aproveitarei meu tempo restante?

Segundo o estudioso cujo nome se perdeu em minha memória após tantos anos, se uma pessoa tem o desejo de resolver várias pendências emotivas e práticas em intervalo tão curto, significa que ela vai morrer mal, porque viveu mal. Morre bem quem vive bem, conforme nos disse naquela ocasião. Como esquecer essa máxima? Quanto ensinamento a morte pode nos dar!?

A Sagrada Escritura, com destaque para os Evangelhos, sempre nos chama à vigilância. Devemos estar acordados e bem preparados para o encontro com o “noivo”, o “senhor da vinha”, o “patrão”, o “ladrão”, Aquele que chega sem avisar. Precisamos ter combustível suficiente para nossas lâmpadas, o óleo da experiência pessoal e intransferível.

Preocupação pastoral na pandemia

A elaboração do luto é outro aspecto da vida-morte-vida que não pode ser ignorado. Em um contexto industrial e urbano como o nosso, e mesmo em nossas comunidades de fé, há uma tendência em jogar para debaixo do tapete a carga da morte. Quanto crucifixo não foi trocado por uma imagem de Jesus já ressuscitado? Um modismo questionável não somente do ponto de vista artístico, litúrgico e catequético, mas que pode nos levar a ocultar outros crucificados e cruzes da vida, inclusive a implacável dor de uma perda.

Pelo olhar antropológico, precisamos, sim, de ritos fúnebres, de viver o luto. Nesses dias, é melhor o roxo ao dourado. Embora devamos testemunhar a vitória da vida sobre a morte, como manda nossa mais básica fé, necessitamos dessa pausa.

Como ministro ordenado e próximo à realidade eclesial de um querido povo, admito que estou apreensivo por muitas famílias não poderem manifestar o luto nestes difíceis tempos de pandemia. As pessoas falecidas em decorrência da covid-19 tiveram de ser sepultadas às pressas, sem os devidos ritos que cada cultura reserva a seus mortos. As despedidas, mesmo para quem partiu por outros motivos, são breves, superficiais, praticamente à beira do túmulo.

Teremos de buscar uma solução pastoral, ainda que seja preciso esperar um pouco. Visitas às famílias, escuta, dias de oração e homenagens, criação de memoriais, parceria com profissionais… Alguma coisa precisará ser feita em nossas comunidades. Ciclos precisarão ser encerrados e pensadas muitas feridas ainda latejantes. Como é difícil compreender o glorioso Domingo da Ressurreição sem a Sexta-Feira da Paixão!

Dedico este texto a meu sogro, o sr. Moacir Alberto de Oliveira, falecido em 25 de outubro último. Bendito seja Deus por sua vida!

Alessandro Faleiro Marques
Diácono permanente na Arquidiocese de Belo Horizonte, professor de Língua Portuguesa, editor de textos para as irmãs servas do Espírito Santo.

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