“Vidas negras importam”: a luta dos afrodescendentes no Brasil

“Depois de escalar uma grande montanha se descobre que existem muitas outras montanhas para escalar” (Nelson Mandela, 1994).

O mês de novembro é o momento de fomentar, em todos os níveis da sociedade, reflexões sobre o peso da escravidão e como essa história reflete-se atualmente no seio da comunidade afrodescendente. Se, no passado, os negros recorreram à sua história como forma resistência e luta, em nossos dias, devemos resgatar a história como instrumento do enfrentamento ao racismo.

Estamos diante de um governo de extrema-direita, que vem ostensivamente desmantelando a memória, programas e direitos conquistados pelo povo negro no Brasil, e de uma parcela da sociedade que insiste na manutenção de “valores racistas”. Falas e atitudes racistas vem expondo, cada dia mais, a população negra às estatísticas de violência.

Podemos citar o caso do pequeno Miguel Santana da Silva, de 5 anos, que caiu do 9º andar, no Recife. O garoto era filho da empregada Mirtes, que havia deixado a criança sob os cuidados da patroa branca, enquanto a trabalhadora levava o cachorro da família para passear. Do caso da Loja Zara, com várias acusações de racismo, entre elas, a de um código para avisar a entrada de pessoas negras e pobres em suas lojas, os abusos e atos violentos contra as religiões de matriz africana, e tantas outras formas de racismo estrutural e institucional que presenciamos no dia a dia.

Diante desse contexto, é imprescindível reafirmar a importância de manifestações e lutas por uma sociedade igualitária, plurirracial, que respeite as diferenças de cor, gênero, idade e raça. A Constituição de 1988 estabelece o racismo como crime inafiançável, reconhece direitos fundamentais, como à liberdade, à saúde, à justiça, à igualdade para todos, sem distinção de raça, gênero, cor, origem, idade, etc., proíbe diferenças salariais e de contratação tendo critério de gênero, idade, cor ou estado civil. Há também a lei contra o preconceito de raça ou cor (Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989); de cotas raciais, voltada para a educação superior (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012); na área da educação básica, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira (Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003).

Esses direitos conquistados não foram suficientes para dissipar a desigualdade racial. A maioria da população, que, no Brasil, é de pessoas negras (isso significa 54,9%, segundo IBGE), tem os piores índices socioeconômicos. Os desafios são muitos, e ainda temos um longo e árduo caminho a percorrer.

Liberdade capenga

A desigualdade racial no Brasil tem seus pés fincados no regime escravocrata, e a desigualdade social tem os dois pés fincados na senzala. Mesmo depois da libertação, os ex-escravos e seus descendentes foram condenados a viver à margem da sociedade.

Depois de mais de 300 anos de escravidão, a Lei Áurea (Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888) trouxe uma liberdade capenga. Não contemplava aos negros os direitos a educação, saúde, trabalho, recursos que auxiliassem a integração à sociedade e ao mercado de trabalho. Sem poder ir à escola, trabalhar decentemente, acusados de vadiagem, empurrados para viver nas periferias das grandes cidades e excluídos de toda e qualquer possibilidade de vida digna.

A Lei Áurea estava longe de ser um ato de benevolência da Monarquia, mas sim resultado da pressão do Reino Unido e dos movimentos abolicionistas. Os historiadores nos mostram que, antes da Lei Áurea, várias ações foram protagonizadas pelos negros escravos em seu processo de libertação, como fugas, formação de quilombos, rebeliões, desobediência à rotina de trabalho nas fazendas.

Os negros, que produziram riquezas por séculos, estavam libertos sem políticas públicas, sem mudanças estruturais que os amparassem. Na mesma época, o governo brasileiro estimulava, com políticas de incentivos, a imigração de europeus. A vinda dos europeus encontrava apoio na ideia racista de que era necessário “branquear” a população, que era maioria. Assim, estaria próxima às “civilizações” europeias e reorganizaria a economia do País.

Nesse contexto, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte, em uma sociedade marcada pela discriminação racial, embasada em teorias que justificavam a superioridade intelectual, física e moral dos brancos europeus. A ideologia de branqueamento contribuiu para desenvolver nos brancos o complexo de superioridade e, nos negros, o de inferioridade, servindo para legitimar e naturalizar o racismo.

A população mista do Brasil deverá ter, pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro (LACERDA, 1912).

Conforme sentia a violência do preconceito, o negro buscava livrar-se desse sofrimento, assimilando comportamentos e atitudes dos brancos, negando suas origens, desenvolvendo complexos e traumas repassados de geração em geração. O Dia da Consciência Negra é uma data para evidenciar o racismo e a resistência de todos os negros que, no dia a dia, combatem a discriminação e o preconceito racial.

O Estado não pode mais se omitir e ser indiferente diante das situações vividas pelos afrodescendentes. Dados revelam que 75% dos negros e pardos no Brasil vivem em situação de pobreza e vulnerabilidade, concentração nas periferias, exclusão social e política. Além disso, 64% de desempregados são negros e pardos, 66% das mulheres que sofrem violência doméstica e sexual são negras, 66,7% do sistema prisional é composto de pessoas negras, o índice de mortalidade infantil é maior entre os negros. São vítimas do subemprego, da violência policial, do desrespeito patrimonial, cultural e religioso, e de violação dos diretos das comunidades quilombolas.

A Lei Áurea completou 133 anos. De lá para cá, algumas leis e políticas públicas foram estabelecidas, com tímidos avanços na promoção da inclusão social. O racismo estrutural e institucional, contudo, é uma dura e vergonhosa realidade na sociedade atual.

O Brasil ainda convive com trabalho escravo. Segundo a SIT (Secretaria de Inspeção do trabalho), em 25 anos, 55 mil pessoas foram resgatadas de trabalho análogos à escravidão. Em 2020, foram 942 casos registrados.

A pandemia escancarou essa desigualdade. Trouxe à tona a situação de vulnerabilidade que continuam vivendo os pretos e pardos no Brasil. Todos os dias, os negros são alvos recorrentes de racismo, seja ele de forma velada ou explícita. Isso revela que os descendentes dos escravos libertos continuam a sofrer com preconceito, violência e falta de oportunidades.

Políticas efetivas

A luta por um Estado democrático de direito passa pela discussão da desigualdade racial, racismo e suas mazelas. Queremos políticas públicas efetivas para combater o racismo estrutural, queremos respeito às religiões de matriz africana, queremos a manutenção dos direitos já conquistados, como as cotas, reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas, a punição na forma da Lei nº 7.716, artigo 1º: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”.

Em 28 de outubro de 2021, o Brasil dá mais um passo no combate ao racismo. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o crime de injúria racial poderá ser equiparado ao de racismo e ser considerado imprescritível, ou seja, passivo de punição a qualquer tempo.

Somos a maior população negra fora do continente africano. Essa luta é dos negros, mas somente se tornará uma realidade quando brancos, negros, pardos estiverem marchando juntos para viabilizar a igualdade e a equidade racial.

Vidas negras importam sim!

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Referências

CALDAS, Andressa; GARCIA, Luciana. Direito à terra das comunidades remanescentes de quilombos: o longo e tortuoso caminho da titulação. Justiça Global, 13 ago. 2007. Disponível em: http://www.global.org.br/blog/direito-a-terra-das-comunidades-remanescentes-de-quilombos-o-longo-e-tortuoso-caminho-da-titulacao/ Acesso em: 18 mar. 2021.

FERNANDES, Cláudio. Tese do branqueamento. Mundo educação. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/tese-branqueamento.htm Acesso em: 18 mar. 2021.

INSTITUTO MATTOS FILHO. Disponível em: https://www.institutomattosfilho.org/ Acesso em: 11 nov. 2021.

LACERDA, João Baptista de. Sur les métis au Brésil. In: CONGRÈS UNIVERSEL DES RACES, 1, 1911. Sur les métis au Brésil. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1912.

OLIVEIRA, Idalina Maria Amaral de. A ideologia do branqueamento na sociedade brasileira. 2008. 14 f. (Monografia) – Secretaria de Estado da Educação do Paraná, UENP, Santo Antônio do Paraíso, 2008. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1454-6.pdf Acesso em: 18 mar. 2021.

POLITIZE! Disponível em: https://www.politize.com.br/ Acesso em: 11 nov. 2021.

REINHOLZ, Fabiana. Após 132 anos da abolição, Brasil ainda não fez a devida reparação da escravidão. Brasil de Fato, 13 maio 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/13/apos-132-anos-da-abolicao-brasil-ainda-nao-fez-a-devida-reparacao-da-escravidao. Acesso em: 18 mar. 2021.

Maria do Socorro Azevedo de Jesus
Professora de Geografia e História, formada pela Faculdade Castelo Branco (ES), formada em Teologia Faculdade de Moema (SP), atualmente aposentada.

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