“Devolvei a César o que é de César e dai a Deus é que é de Deus” (Mt 22,21)
No evangelho de hoje, continua o confronto entre Jesus e as autoridades religiosas. Os sacerdotes, anciãos e escribas tinham sido criticados e denunciados por Jesus na parábola da vinha. Agora, os mesmos pedem aos fariseus e herodianos para armar uma cilada contra Jesus – “é lícito ou não pagar imposto a César”? –, a fim de poder apanhá-lo e condená-lo.
O tema era muito polêmico em tempos de Jesus. Vai mais além do simples pagar imposto ou não. Revela uma concepção de vida que tem a ver com ser livres ou escravos. São o povo de Israel, povo eleito por Deus: como, então, vão se submeter a César?
Jesus percebe a hipocrisia. Na sua resposta, ele não perde tempo em discussões inúteis, e vai direto ao centro da questão. Ele não cai na armadilha (pagar ou não pagar), mas propõe um caminho diferente: devolver a moeda a César, dar o que é seu, sair de seu império econômico, para, assim, ocupar-se verdadeiramente das coisas de Deus.
Este é um tema antigo, mas também atualíssimo, que nos situa diante do ideal de uma humanidade fraterna em gratuidade (sinal de Deus) e a realidade de uma política e economia sustentadas por tributos que, em princípio, poderiam e deveriam estar a serviço de todos, mas que, na realidade, tendem a ser controlados por alguns.
Diante da pergunta sobre o pagamento de impostos, Jesus dá à sua resposta uma profundidade que seus adversários não esperavam e que não lhe perguntaram: “e dai a Deus o que é de Deus”.
Que é de Deus? Para os judeus, como para nós, tudo é de Deus. Se a moeda tem a imagem de César, toda pessoa humana é, em si mesma, imagem de Deus; todos somos filhas e filhos seus. E, a partir dessa realidade, tudo muda em nossa vida. Portanto, não se trata de estar a serviço de dois senhores, de dividir os afetos entre eles, de estabelecer proporções e equilíbrios entre Deus e César. Jesus não coloca Deus e “César” no mesmo plano; são tantos “césares” a quem pagamos tributo e de quem nos fazemos súditos que até esquecemos que “Deus é o único Senhor”. Deus não pede impostos nem se impõe sobre nós; é pura gratuidade. Sua presença é sempre providente e cuidadosa e que desperta em nós uma profunda gratidão: devolver a Ele todos os bens e dons que recebemos.
A única coisa que Deus deseja para todos é esta: uma vida mais humana desde agora e uma vida que alcance sua plenitude na vida eterna. Por isso, nunca se pode dar a nenhum “César” o que é de Deus: a vida e a dignidade de seus filhos e filhas.
Só ali onde é devolvida a César a moeda é que se pode dar a Deus o que é de Deus, ou seja, tudo o que somos e temos, inaugurando um tipo de vida diferente, em gratuidade, isto é, sem “capital” de império, sem a violência política e econômica que o tributo simboliza, sem o poder que desumaniza.
A resposta de Jesus aos fariseus e herodianos revela a existência de dois dinamismos, duas forças, ou duas presenças em nosso interior. Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções; essas tendências encontram-se instaladas no cento mesmo do coração.
Nele se encontram, com efeito, as raízes dessa dinâmica que, por um lado, se deixa conduzir pelo “cézar da vida” fechando a pessoa no seu próprio ego e fazendo-se o centro; e, por outro, quem se deixa conduzir pela presença do Espírito, entra no fluxo da expansão de vida em direção à alteridade, ao serviço, à partilha. De um lado, o impulso para ir além de si mesmo; de outro, o movimento de retração e fechamento em si.
É preciso despertar a consciência da presença dessas duas forças opostas (uma de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros, à criação, a Deus; e outra de fechamento, resistência e medo).
Aqui não se trata de alimentar um combate entre “Deus” e César”, entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações… presentes em todos nós).
O seguimento de Jesus não é luta interna que desgasta, levando ao sentimento de impotência e desânimo. O combate dualístico (entre o bem e o mal) desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo… onde o centro sou “eu”.
A questão de fundo é saber: quem alimentamos em nossa vida? “Deus” ou “César”? Quem ocupa o centro da nossa vida? Estamos a serviço de quem? Onde estão nossos afetos: ordenados para Deus ou para “César”? Aqui nossa liberdade é ativada para deixar-nos conduzir pelo Espírito, assim como as águas do riacho se deixam conduzir em direção ao Grande Oceano. O centro é o Espírito.
Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre “Deus” e “César”, entre o “Deus de Amor” e o “César do poder”, entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores, pois não se pode investir afetivamente em duas direções.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e, ao mesmo tempo, amar o “César”, isto é, amar o poder, a acumulação de riquezas que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração…
A fidelidade ao Deus único fica interditada, e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “césares” dos bens, das riquezas, do poder… apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. Como todo ídolo, o “César” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.
Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero.”
A proposta dos Evangelhos, nesse sentido, é clara e contundente.
Eleger a partilha e o despojamento é a base e condição para poder seguir Jesus no trabalho do Reino.
A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino.
A afeição aos bens, ao poder, à vaidade…, pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
No centro da mensagem do evangelho, encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igualdade e da fraternidade de todos os homens e mulheres. A criação de uma comunidade onde o compartilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
A quantos “césares” pagamos tributos? Em chave de interioridade, alimentamos muitos “césares”, de quem nos tornamos súditos e dependentes, e que se impõem a nós com seus “impostos”. São os nossos apegos, instinto de posse, busca de poder e prestígio, posição social, títulos… que exigem alto investimento afetivo. Carregamos “nocivos hospedeiros” que um dia entraram em nossa vida, foram crescendo lentamente, alimentando-se de nós mesmos e acabam nos paralisando como em teias de aranha, destruindo-nos por dentro. É preciso reordenar todos os dinamismos e potencialidades humanas em direção a um horizonte de sentido: o Reino. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Deus é Santo, mas em sua santidade pede sinceridade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Deus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: você se sente pessoa livre, que busca e escuta a verdade, Aquele que é a verdade?
– Você está a serviço da verdade, ou da mentira, das “fake news”? Seus afetos estão ordenados no serviço do “Deus do Reino” ou “césar do poder”?
Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).