Viver a lei interior da caridade

“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20)

A liturgia deste domingo nos apresenta um longo texto do evangelho de Mateus. É importante que descubramos a mensagem central, essencial e sumamente importante ali presente, se não quisermos correr o risco de nos enredar em cada detalhe, perdendo aquilo que, de verdade, Jesus desejava para as comunidades cristãs.

O primeiro parágrafo já nos dá a chave de leitura de todo o texto. Mateus explicita a atitude de Jesus frente à Lei: “Vim para dar-lhe plenitude”; ou seja, Ele não se limita a analisar os detalhes da Lei, nem criticar alguns preceitos, mas dar plenitude e sentido profundo.

E esta plenitude não significa melhorar a lei com novas normas que Jesus confrontaria com as antigas, por considerá-las mais perfeitas. A plenitude que o evangelho nos apresenta não vai na direção de “maior perfeição” da lei, mas de uma mudança radical: Jesus mesmo é a plenitude da Lei. Sua pessoa, sua identidade, sua mensagem, sua maneira de viver é a Lei mesma em sua plenitude. Por isso, acolhê-Lo, crer n’Ele, identificar-nos com Ele, vivendo como discípulos seus, nos torna “grandes no Reino dos céus”.

Os evangelistas deixam claro que Jesus não vive centrado na Lei; não se dedica a estudá-la nem a explicá-la a seus discípulos. Nunca o vemos preocupado por observá-la de maneira escrupulosa. Certamente, não põe em marcha uma campanha contra a Lei, mas esta não ocupa um lugar central em seu coração. Jesus não foi contra a Lei, mas foi além da Lei. Quis dizer-nos que sempre temos que ir mais além da letra, da pura formulação, até descobrir o espírito da lei. “A lei mata, o espírito vivifica” (S. Paulo).

Jesus busca a Vontade de Deus a partir de outra experiência diferente, ou seja, procurando abrir caminho entre os homens para construir com eles um mundo mais justo e fraterno. Isto muda tudo. A Lei já não é o decisivo para saber o que Deus espera de nós. O primeiro é “buscar o reino de Deus e sua justiça”.

“Justiça” é um termo particularmente especial para Mateus, e que poderia ser traduzido como “ajustar-se ao modo de agir Deus” “sintonizar-se à sua vontade” – uma justiça que é infinitamente superior à Lei.

Para ressaltar a “novidade” da mensagem de Jesus, o evangelista Mateus realça que “se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.

O texto aponta para algo de grande profundidade e que toca uma questão básica do caminho espiritual: “a partir de onde eu vivo? vivo a partir da lei externa ou a partir do coração?”

Os códigos morais insistem nas ações: “não matar”, “não cometer adultério”, “não jurar”. Mas, provavelmente, todos temos experiência de que é possível não ter cometido nada disso e, no entanto, vivemos com o coração endurecido, desconectado daquilo que é realmente importante.

A mensagem de Jesus é radical pois quer chegar à raiz. E por isso nos confronta com nossa própria verdade interior. O evangelho deste domingo nos revela um Jesus que vem para dar plenitude à lei. Mas essa plenitude está muito distante do mero cumprimento externo: não matar, não cometer adultério, não jurar falso… Supõe ir mais adentro, mais a fundo, examinando nossas atitudes, nossas razões, nossos sentimentos e tudo aquilo que nos constrói e define como pessoas. É aí, no centro de nossa humanidade, onde conectamos com o espírito e o divino em nós; onde todos somos uno e nossas ações são um fluir dessa unidade interior.

Viver a partir do “coração” significa viver a partir do amor que nasce da compreensão da unidade que somos, e que se modela na “regra de outro”: “faça aos outros o que gostaria que eles fizessem a você”.

A nova situação que se instaurou a partir da vinda do Messias não é como a antiga aliança, a aliança da lei exterior ao homem; é, pelo contrário, a aliança da interioridade, a situação que se define pelas atitudes que brotam do coração.

Há uma frase que se repete três vezes no texto deste domingo, e que, ao mesmo tempo, é novidade e ruptura. Certamente, ela se revelou escandalosa para muitos contemporâneos de Jesus, judeus fiéis à lei de Moisés, à qual consideravam-na como voz de Deus: “Vós ouvistes o que foi dito… Eu, porém, vos digo”.

A novidade e a ruptura estão na afirmação: “Eu, porém, vos digo”. A força da expressão é o “eu”. Sua autoridade reside em sua pessoa. Sua maneira de ser e viver é nossa “lei” e referência. A partir de agora, cumprir a lei é crer n’Ele e segui-lo. A coerência de Jesus é a origem de sua autoridade; não é a dos escribas e fariseus que dizem, mas não fazem.

O evangelho pede de todos nós uma mudança absoluta. É como se Jesus nos dissesse: “não fiques só em tuas ações, a lei está dirigida ao coração, ao interior de tua pessoa, às tuas atitudes profundas, às tuas razões para agir, aos teus sentimentos, àquilo que te constrói e te define como pessoa. Tu não podes te limitar em não atacar teu irmão; és chamado a amá-lo, compreendê-lo, perdoá-lo…”

Com a novidade do anúncio e da prática de Jesus, realizou-se uma transformação radical nas relações do ser humano com Deus e com os outros. Esta transformação consiste em que o regime da observância da lei foi sucedido por outro regime, o regime filial, que comporta uma situação muito diferente.

Por conseguinte, a nova situação consiste em que não só fomos libertados da lei, senão que, além disso – e sobretudo – Deus nos fez verdadeiros(as) filhos(as) seus(suas).

Nesse sentido, as relações de intimidade familiar não se fundamentam a partir de um regulamento ou de uma codificação legal. Seria simplesmente absurdo que duas pessoas, que se amam, se pusessem a redigir um regulamento no qual se estipulasse taxativamente como dever-se-iam agradar mutuamente.

Quando se trata de uma relação pessoal, vivida nessa profundidade, é o dinamismo do amor que faz cada um inventar sua própria conduta, descobrir o que agrada ao outro e evitar a todo custo o que pode causar distância entre eles.

Pode-se e deve-se dizer: a liberdade que a fé exige é viver o amor com todas as suas consequências. As exigências da lei são sempre limitadas; as exigências do amor, pelo contrário, não têm limites.

O único limite do amor é amar sem limites, é a disponibilidade e o serviço incondicional aos outros.

Ou seja, no amor não há limite possível. E isso, no fundo, é o que nos dá medo e nos assusta a ideia de uma vida cristã na qual tudo depende, não da observância de algumas leis (com seus limites e casuísticas), senão do grau e da dose de amor sincero, da bondade sem limites que alguém tenha frente aos outros com quem convive.

É preciso superar o legalismo que se contenta com o cumprimento literal de leis e normas. O empenho de Jesus consistiu em fazer as pessoas passarem de uma religiosidade externa a uma atitude interna, ou seja, passar de um cumprimento de leis a uma descoberta das exigências de nosso próprio ser.

Nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como Jesus os vivia: buscando esse mundo mais justo e fraterno que o Pai tanto deseja.

Nesse sentido, o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho.

Esta é a diferença entre a Lei e o Evangelho: a Lei deixa a pessoa abandonada às suas próprias forças, impõe-lhe preceitos que é preciso esforçar-se por cumpri-los, ameaça-a, premia-a, exige-lhe empenho…

O Evangelho, no entanto, coloca a pessoa diante do dom de Deus, faz-lhe conhecer seu Pai, converte-a em filho(a), transforma-a por dentro… e não a obriga a nada. No amor não há imposição, mas acolhida.

Texto bíblicoMt 5,17-37

Para meditar: Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo”, presentes no seu cotidiano.

– Frente às limitações do outro, o que prevalece? O peso da lei ou a força da misericórdia?

Padre Adroaldo Palaoro, SJ
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana (CEI).

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