Chamado na Itália, missionário na Amazônia: entrevista com o frei Paolo Maria

Por ocasião do dia dedicado à vocação à vida religiosa, celebrado no terceiro domingo de agosto, nosso blog apresenta o missionário capuchino, frei Paolo Maria Braghini. Em entrevista à irmã Rosa Martins, ele fala sobre sua vocação, como se tornou missionário e os desafios da missão onde se encontra atualmente. 

Nascido no Norte da Itália, frei Paolo formou-se com os freis da Província de Assis, os quais atuam como missionários no Alto Solimões, Amazonas, há muitos anos. “Assim que fui ordenado padre, ainda jovem, aos 30 anos, me enviaram para Belém de Solimões, e agradeço a Deus todos os dias”, declara. 

Aos 24 anos, Frei Braguinha, como é carinhosamente chamado por sua comunidade de missão, foi enviado como missionário para a Amazônia, onde se encontra ainda hoje. “Sempre quis ir para a missão. Quando adolescente, sonhava ser missionário na Croácia. Na verdade, ser religioso nunca agradou muito a minha família. Meu pai ficou dois anos sem falar comigo”, conta. 

Veja a íntegra da entrevista:

Frei, quais lembranças o senhor tem de sua juventude, na Itália?

Frei Paolo Braghini: Tenho lembranças belíssimas de minha juventude, principalmente os últimos anos do ensino médio, período em que estava caminhando rumo ao matrimônio, uma paixão intensa, muito bonita (risos) e várias paixões próprias dessa idade: motos, vôlei, esporte. Aos poucos, Deus foi tocando meu coração, até esse chamado se tornar mais forte do que tudo e eu não poder mais resistir.

Frei Paolo, o senhor se sentiu chamado, pela primeira vez, numa peregrinação ao Santuário de Lourdes. Poderia detalhar como isso se deu?

Frei Paolo: Sim. Senti o chamado durante uma peregrinação, quando os pais de minha namorada nos ofereceram uma viagem a Lourdes, porque, no ano seguinte, ao terminar o ensino médio, nos casaríamos. Os doentes, aquele lugar de fé tão extraordinário tocaram meu coração. No último dia, senti um chamado fortíssimo que saiu do coração da noite. Fui sozinho à gruta e, quando me ajoelhei, olhando a imagem de Nossa Senhora, talvez tenha sido ali a vez que mais chorei na minha vida, senti no íntimo a voz de Jesus: “Deixa tudo e segue-me”. Eu chorava e dizia o nome de Michela. Chorava, porque sentia que, naquele momento, estava cedendo ao chamado de Deus. E Deus me levou por caminhos incríveis. Um dia, sem nenhum planejamento anterior, senti o desejo de ir para Assis. Nunca tinha visto um frade capuchinho antes. Encontrei um frei que, por mais de 40 anos, doava sua vida na Amazônia. Ao vê-lo, senti uma alegria tão profunda! Senti que Deus estava me chamando. Eu via radicalidade na vida, nas sandálias daquele homem. E senti claríssimo que minha vocação era dar a vida totalmente pelos pobres, como frade menor capuchinho.

“Deus me levou por caminhos incríveis.”

Onde o senhor se formou para a vida religiosa consagrada?

Frei Paolo: Formei-me com os freis capuchinhos da Província de Assis, na Itália, os quais atuam como missionários no Alto Solimões, Amazonas, há muitos anos. Sempre dizia que queria ir para a missão. Assim que fui ordenado sacerdote, ainda jovem, aos 30 anos, eles me enviaram para Belém de Solimões, e agradeço a Deus todos os dias.

O senhor deixou seu país para ser missionário. O que trouxe para o povo brasileiro e o que dele recebeu?

Frei Paolo: Com certeza, recebi muito mais do que levei. Eu, como também os freis, percebemos que mais recebemos do que damos, como já afirmou Jesus, que quem deixa tudo receberá cem vezes mais. Eu trouxe meu coração, minha vida, todo o meu ser. Doei minha vida, às vezes ao ponto de perder a saúde, por exagero de doação. Como italiano, não tenho um físico predisposto à intensidade da floresta amazônica. Os indígenas são fortíssimos, e, sendo eu europeu, não tenho toda essa força, essa energia que eles têm como dom de Deus para viver a potência deste clima, desta floresta.

Pode citar alguns exemplos do que o senhor recebeu dos povos amazônidas?

Frei Paolo: Primeiro recebemos uma família. Eles cuidam da gente, é algo de extraordinário. Outra coisa interessantíssima: nós viemos com o desejo de ensinar e, mais que isso, de testemunhar o Evangelho e o jeito franciscano de vivê-lo, mas são eles que nos estão ajudando a sermos mais franciscanos. Acho que eles têm o DNA de São Francisco no coração. É uma ajuda diária recíproca. Evangelizamos e somos evangelizados. Estar aqui é uma graça de Deus. É muito difícil expressar isso em palavras. Nós não trabalhamos com eles, nós convivemos com eles.

Em Alto Solimões, você atua numa aldeia, certo?

Frei Paolo: Moramos numa aldeia a que chamamos Alto Solimões, uma reserva indígena demarcada, denominada Eware (evare). Para os Ticuna, Eware é um lugar da mitologia da Criação, onde o povo e todas as etnias foram criadas, um lugar sagrado.

A paróquia de Alto Solimões foi uma iniciativa do bispo Dom Alberto Márcio, ao retornar do Concílio Vaticano II, por compreender que os indígenas precisavam de um cuidado diferenciado. É um modelo diferente das outras paróquias?

Frei Paolo: Sim. Dom Alberto entendeu que os indígenas não podiam ser atendidos por modelos de paróquias e pastorais da cidade. Criou, então, uma paróquia na aldeia, a única nesse formato, que está fora da cidade, do Município, justamente para um atendimento diferenciado.

O senhor disse que a etnia é Ticuna. Existem outras etnias? E como se dá o trabalho pastoral na Eware?

Frei Paolo: Cerca de 95% são da etnia Ticuna, que falam a língua-mãe. Entre as 72 aldeias que visitamos por via fluvial, de canoa, por não existirem estradas, temos algumas poucas aldeias com etnias diferentes: Cocama, Cambeba e Canamari. Tentamos acompanhar, de forma personalizada, cada uma com sua cultura e língua. A grande força de nossa paróquia são os indígenas. Temos um conselho pastoral com mais de 40 membros, entre mulheres, homens, idosos, cada um colaborando e assumindo a caminhada. Hoje temos uma Igreja viva, com rosto amazônico, comunidades vivas, catequese com milhares de crianças em todas as aldeias, na língua deles e a partir da cultura deles. Sempre nos sentimos João Batista: eles devem crescer, e nós diminuirmos.

“Deus já semeou o bem nessas culturas, 

e nós devemos aprender com eles.” 

Frei, qual a metodologia que usaram e usam para terem esse resultado tão positivo no processo missionário?

Frei Paolo: Levamos três anos para conhecer as 72 comunidades. Claramente entendemos que, se quiséssemos assumir a pastoral sozinhos, seria impossível, morreríamos. Entendemos a metodologia de Jesus: não nós, mas, como Jesus, deveríamos dar a responsabilidade, o protagonismo missionário a eles. São mais de 70 missionários que, todos os meses, visitam as comunidades, utilizando a língua deles e seus meios. E as comunidades estão crescendo. É bonito ver a alegria e doação desses idosos e jovens missionários Ticuna.

Como é encarnar-se, ser missionário numa realidade como Alto Solimões?

Frei Paolo: A vocação missionária inclui buscar mergulhar na cultura deles, sabendo que Deus já semeou o bem nessas culturas, e nós devemos aprender com eles. Não é fácil, e é preciso renunciar a si mesmo, a seu jeito, modo de pensar, esquemas. Esse talvez seja o processo mais difícil, porque, queira ou não, carregamos uma forma de ser Igreja que é muito ocidental. Uma das dificuldades que estamos vendo em uma Igreja nova que está surgindo é quando, às vezes, vamos à cidade, não somos aceitos por causa da diversidade, como se o modelo certo fosse o da Igreja romana, da cidade. Uma Igreja que tem um rosto mais indígena é estranha. O Sínodo para a Amazônia nos deu um alívio. Sentimos, a certa altura, que não estávamos errados, e o Papa sempre nos anima a seguir adiante, porque é este o caminho. Mas é um processo lento e difícil.

Vocês têm um excelente trabalho com as juventudes. Como se dá?

Frei Paolo: Gostaria de evidenciar que, na sociedade ocidental e até na Igreja, divide-se muito a catequese das crianças, adolescentes, adultos. Entre os indígenas, é difícil separar, porque é um povo que vive a fraternidade comunitária em tudo. Quando se faz a catequese para as crianças, as mães participam juntas. Nos encontros de jovens, pais e crianças participam. As atividades que fazemos com os jovens são atividades da comunidade. Nas visitas missionárias, as crianças acompanham, pois os jovens missionários, aos 15 anos, já são pais.

E quais são os maiores desafios encontrados nessa faixa etária, frei?

Frei Paolo: Uma das dificuldades e desafios dos indígenas é a presença de alcoolismo, drogas, violências, que, infelizmente, aumentam nessa região de tríplice fronteira entre Peru, Colômbia e Brasil. O suicídio está aumentando entre os jovens.

Como a evangelização pode ser compreendida nesse contexto?

Frei Paolo: Para nós, evangelizar não é só anunciar o amor de Deus, o Evangelho, mas fazer obras para este povo, escutando com atenção os seus desejos explícitos, implícitos, oferecendo promoção humana: música, violão, teclado, marcenaria, corte e costura, eletricista. Tudo o que sentem ser importante procuramos oferecer a eles, como prevenção, na luta constante contra o álcool e as drogas. Tentamos formar novas lideranças, mas o grande desafio é lutar contra a globalização: energia elétrica, televisão, internet que estão entrando cada vez mais nas aldeias e fazem com que os jovens entrem em crise, porque o mundo é ocidental. Eles se olham e entendem que, por não estarem naquele mundo, estão errados. Parece que tudo o que veem na internet, na tevê está certo, e eles estão errados. A globalização tenta apagar a diversidade cultural.

 

Rosa M. Martins

Mestra em Jornalismo, Imagem e Entretenimento pela Fundação Cásper Líbero, licenciada em Filosofia pela Universidade Salesiana de Lorena (Unisal), bacharela em Teologia pela Pontifícia Universidade São Boaventura de Roma. É missionária scalabriniana e vive em Santo André-SP. Indicada ao Prêmio Tarso Genro de Jornalismo em 2020, foi vencedora do Prêmio Papa Francisco, categoria mestrado, do Prêmio CNBB de Comunicação, com a dissertação “Menores estrangeiros não acompanhados: uma análise da representação no fotojornalismo italiano”, em 2021.

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