O encontro além da Galileia significou a Jesus adentrar não somente num território diferente, mas se inserir no próprio núcleo da hostilidade. Lembrando que ambos os povos, por vários fatos, ao longo da história, foram afundando na hostilidade (ver, por exemplo, 1Rs 16,31-33; Ez 26,15-21; 27,3-4.25-33; Zc 9,3). Por outro lado, o texto precedente do estudado aqui nos mostra que o confronto de Jesus com as autoridades judaicas tinha se tornado hostil. Quiçá esse fosse o motivo que fez Jesus ir para o território de Tiro.
Considerando esse preâmbulo, será bem mais fácil ao leitor compreender que a cura que a mulher siro-fenícia procura para sua filha vai além de uma solução biológica, pois se insere na ótica das estruturas da existência social (a comunidade dos seguidores de Jesus estava vivendo o conflito de acolher ou rejeitar os pagãos). Observemos: “Saindo dali, Jesus foi para o território de Tiro… Logo em seguida, uma mulher cuja filha tinha um espírito impuro ouviu falar dele e veio a atirar-se a seus pés. Essa mulher era pagã, siro-fenícia de nascimento. Ela pedia a Jesus que expulsasse o demônio de sua filha” (vv. 24-26).
O evangelista nos introduz no drama do encontro de Jesus e a mulher de origem pagã. Ela tem um forte motivo para ir ao encontro de Jesus: o desejo de liberdade. E, atirada a seus pés, pede a ele que expulse o demônio de sua filha. Jesus, porém, nos surpreende, já que responde defendendo a honra coletiva dos judeus, “os filhos”, para logo acrescentar “se fartem primeiro”, pois “não fica bem tirar o pão dos filhos para atirá-lo aos cachorrinhos”. Entretanto essas expressões que refletem a hostilidade étnica, cultural e religiosa mostram que Jesus toca o fundo do conflito, para desmitificá-lo e, novamente, restabelecer as relações.
É interessante que, a seguir, a mulher retoma a imagem de Jesus e desenvolve-a em seu favor: “É verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos!” (v. 28). Cabe observar que essa é a única vez que Marcos refere o título Kyrios (Senhor) em grego. É essa a invocação com que a comunidade de Marcos vai se dirigir a Jesus ressuscitado. Entretanto a resposta “comer as migalhas dos filhos” é o primeiro passo dado pela representante da comunidade dos pagãos vindos à fé, a mulher siro-fenícia, para restabelecer a relação há séculos rompida entre os judeus e os povos de origem pagã.
Destarte os limites da identidade coletiva são redelineados por Jesus, na base da ética universal. Jesus é um pregador revolucionário que vem dos campos da Galileia e que propõe outra sociedade: não mais baseada nos privilégios raciais, na força do capital, nos latifúndios e propriedades privadas, mas fundada na igualdade da confederação das tribos. Portanto a base para a segregação social e racial se vê subvertida por Deus mesmo. E Deus conta com a nossa resposta livre e gratuita que teça relações criadoras (cf. Gn 1,26-28).
Diante dessa boa notícia, caberia nos perguntar: quais são então as bases em que se apoiam nossas sociedades quando expressam leis que rejeitam, discriminam e excluem Que sustém e alimenta a ideologia do acúmulo de uns em detrimento de multidões Por que nossa cultura descarta os que são diferentes Além disso, poderíamos também nos perguntar: quais são os mitos que devem ser desconstruídos para restabelecer as relações entre nós e com o nosso planeta A que ou quem convém que caminhemos na contramão daquilo para o que fomos criados?
O texto deixa ver que o problema não era simplesmente a nova ordem proposta por Jesus, mas sim o fato de ele questionar os códigos sociais, culturais e religiosos ancorados no mais profundo das pessoas, no coração. O coração, na concepção bíblica, designa o centro da pessoa, é o lugar dos sentimentos e do julgamento. É frequente encontrar na Bíblia referências teológicas ao coração de Deus. Trata-se do dom inesperado de Deus que transcende todas as relações de fidelidade e ultrapassa as expectativa e categorias humanas. No coração, pode-se dizer que se gesta o melhor que há em nós, mas também nele podemos cunhar o mal (cf. Mc 7,14-23).
Diante dessa realidade, fica-nos o desafio de ir com Jesus além da Galileia para apreender a dialogar com as causas reais dos nossos conflitos. Situar-nos na fé na dinâmica histórica da vida concreta (território, raça, cultura, valores, ritos, expressões, educação, imaginários coletivos, etc.) implica uma conversão total. Isso porque a fé nos abre ao diálogo para desmitificar os códigos culturais que, muitas vezes, cegam-nos, fazendo crer que somos os únicos e, portanto, temos o direito de “filhos”. O amor a Deus, o amor aos outros e o amor a nosso planeta deverá ser nossa bússola e nunca “o direito dos escolhidos”, que é privilégio de alguns.
“E ele lhe disse: ‘Pelo que disseste, vai. O demônio saiu de tua filha’” (v. 29). Jesus expulsa o demônio da exclusão, afirmando que Deus está com os excluídos (pagãos) exatamente para mostrar-lhes que são iguais aos “filhos” e que essa igualdade será defendida por Deus, pois ela é base de nossa identidade (cf. Gn 1,26-27). “Ela voltou para casa… O demônio tinha ido embora” (v. 30). A siro-fenícia compreendeu que realmente Deus liberta, salva e inclui todos, como filhos, na mesa do Reino. E, por isso, é possível pensar, do fundo de nosso coração, outras formas de ser e de nos relacionar.
Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México, trabalhou em Moçambique e colabora na Animação Vocacional.