Encontro sobre o mar (Jo 6,16-21; Mc 6,45-52)

A relação entre as pessoas e Deus começa pelo conhecimento, por isso Jesus se empenhou em modificar a noção que as pessoas tinham sobre Deus. Nesse viés, podemos ler o encontro sobre o mar. Especificamente acompanharemos a narrativa dos evangelistas Marcos e João (Jo 6,16-21; Mc 6,45-52). Esse emblemático episódio também se refere a nós, discípulos e discípulas, hoje submersos na vertigem dos ventos que são contrários à vida. O sociólogo Zygmunt Bauman chamou de “mal líquido” esses ventos (cf. Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis. “Mal líquido: vivendo num mundo sem alternativas”).

Em sua narrativa, João nos diz que, depois da multiplicação dos pães, houve a tentativa de reter Jesus e fazê-lo rei (6, 15). Diante disso, Marcos acrescenta mais detalhadamente a reação de Jesus: “Logo em seguida, Ele forçou seus discípulos a entrar no barco e passar adiante, para o outro lado, a Betsaida (João menciona Cafarnaum) enquanto ele despedia a multidão. E, tendo-a despedido, foi ao monte para orar” (6,45-46). O pano de fundo é o discernimento de Jesus ante duas complexas questões: 1) a crescente hostilidade das pessoas ortodoxas; 2) o grupo que queria fazer dele um messias nacionalista. E o discernimento dos discípulos.

Ambos os evangelistas nos situam no drama que os discípulos enfrentavam nessa travessia: “Já estava escuro, e Jesus ainda não viera encontrá-los. Além disso, soprava um vento forte, e o mar se encrespava” (Jo 6,17-18). Em vista do vento que soprava, eles estavam tentando aproximar-se da margem para obter segurança. João nos diz que os discípulos tinham remado de 25 a 30 estádios (é o equivalente entre cinco e seis quilômetros). Segundo alguns estudiosos, no extremo norte, o lago não tinha mais de seis quilômetros de largura; isso quer dizer que estavam quase chegando ao fim da viagem.

Os detalhes que emolduram essa narrativa descrevem a situação das comunidades antes da chegada de Jesus (vv. 16-18) e o seu efeito depois de Ele ter vindo. Notemos, por exemplo, “ao anoitecer”, expressão de sentido figurado significando “tempo de angústia e de perigo”. Ainda se acrescenta o tema do “mar” que, desde os tempos antigos, traz o significado de ameaça e de forças contrárias a Deus. O “vento contrário” pode ser lido reforçando o mesmo cenário de desorientação e perigo. Cria-se, portanto, um contraste entre o antes e o depois da vinda de Jesus nas comunidades dos discípulos.
Lembremos que o texto de Marcos nos diz que Jesus “forçou” os discípulos a embarcar e ir à outra margem (v. 45). “Ir, atravessar, seguir” exterioriza o desejo do Mestre de abandonar uma situação, mudando por completo de atitude e se afastando dela. Completa-se a ação do verbo com a expressão “outra margem, para…”, dissipando a dúvida sob o lugar a alcançar. Portanto podemos concluir que Jesus quis dirigir-se ao lado oposto do lugar ideológico dominado pelo grupo dos ativistas e pela multidão que queriam fazê-lo rei. E, do mesmo modo, quis que os discípulos se afastassem dessa ideologia.

Certamente, em cada época, Jesus “força” seus discípulos a “atravessar”, a “ir à outra margem”. Pois ele quer salvar a humanidade dos ardis ideológicos que a tentam privar de sonhos e projetos alternativos. É que toda ideologia que é contrária ao Evangelho trabalha com a ideia de sedução, desunião e ainda oferece o “melhor”, porém deixa sem alternativas. A fé, ao contrário, é dinâmica, acolhe as diferenças, é otimista, confia que o bem pode vencer o mal e sempre nos abre possibilidades de um mundo melhor e mais humano.

O mundo, provavelmente, nunca foi tão inundado de ideologias fatalistas e deterministas como hoje. Basta acessar qualquer meio informativo para perceber o emaranhado de projeções de iminentes crises financeiras, políticas e religiosas. As grandes instituições perdem credibilidade, e ameaças de todo o tipo nos transbordam. E, se analisarmos as informações, muitas delas se sustentam em uma “cultura do medo”. Nesse viés, os messias amorais e oportunistas entram em cena e, com os slogans de paz, segurança nacional, progresso da “nossa” nação, afiançam-se no poder.

Mas, como os primeiros discípulos, também temos de levantar os olhos e aguçar os ouvidos, pois o Senhor não nos abandonou. “Viram Jesus aproximar-se do barco, caminhando sobre o mar. Ficaram com medo. Jesus, porém, lhes disse: ‘Sou eu. Não temais’” (Jo 6,19b-20). O relato nos mostra os fadigados discípulos absortos nos remos, tentando se abeirar. Mas, ao levantar os olhos, avistaram Jesus se aproximar deles, caminhando firme sobre as agitadas águas. Então se sentiram alarmados, achando que se tratava de um fantasma. Em seguida, por cima das águas, chegou esta voz tão amada: “Sou eu. Não temais”.

O “Sou eu”, mais que uma identificação, refere-se a uma revelação de Deus como salvador de seu povo (cf. Is 43,1-3.10; 44,2.8; Gn 15,1; Lc 1,30). Trata-se, pois, de uma epifania de Jesus, exortando a confiar nele. Avistar Jesus causa-lhes primeiramente medo, porém sua palavra reveladora lhes dá coragem. Os discípulos ainda não estavam entendendo o que para eles significava ter Jesus consigo. “Quiseram, então, recolhê-lo no barco, mas Ele imediatamente chegou à terra para onde iam” (v. 21). Com Jesus Cristo, é possível fazermos a travessia neste “mal líquido”, pois, unidos a ele, poderemos alcançar a outra margem. Ouçamos sua voz!

Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México, trabalhou em Moçambique e colabora na Animação Vocacional.

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