O encontro com a felicidade (Mt 5,1-12; Lc 6,20-23)

O relato das bem-aventuranças encontra sua versão em Mateus e Lucas. Estudiosos concordam que não se trata somente de um sermão, que Jesus tenha pregado em uma ocasião concreta. Antes, é o resumo dos ensinos que, em diversas oportunidades, Ele ministrara a seus discípulos. Portanto, no trecho das bem-aventuranças, encontra-se o essencial dos ensinamentos de Jesus. De tal modo, todo seguidor de Jesus precisar abraçá-las como programa de vida. Quando Jesus anuncia as bem-aventuranças, o que faz, na realidade, é descrever sua própria vida. Uma vida identificada com os desejos dos pobres, dos que carecem do indispensável para viver com dignidade. Por isso sua vida atraiu e atrai multidões.

Nesse tratado, o surpreendente é Jesus colocando que o que nos faz mais felizes é aquilo que, ao “simples olhar”, parece nos fazer mais míseros. Pois a pobreza, o sofrimento, ter fome e sede de justiça, ser perseguido e insultado (Mt 5,1-12; Lc 6,20-23) é muito difícil de suportar. Onde está, então, a chave da felicidade nesse tratado Nesta breve reflexão, tentaremos responder a essa questão. Mas, antes de continuar, recomendamos a leitura do texto de Mateus (5,1-12), o qual será comentado a seguir. Notemos, logo na introdução, três importantes chaves de leitura: “Subiu à montanha e, sentando-se, começou a ensinar”; “E pôs-se a falar”; “Ensinava-lhes, dizendo”.

No Antigo Testamento, a montanha evoca o lugar do encontro com Deus (Êx 19,3.10-18; 20,1-18). O gesto de sentar-se era comum aos rabinos quando ministravam seus ensinamentos. Nesse marco, a postura de Jesus para ensinar pode dizer da importância do caráter essencial de sua doutrina. “E pôs-se a falar”; a tradução mais exata é “abriu a boca”. Essa expressão, entre outros sentidos, significa abrir o coração. Abrindo seu coração, Jesus mostra os conteúdos mais íntimos àqueles que seriam seu braço direito no cumprimento da missão. “Ensinava-lhes, dizendo”. O verbo “ensinava” está no imperfeito e, portanto, descreve uma ação habitual, repetida de Jesus; entende-se que Jesus ensinava continuamente.

Observemos que cada bem-aventurança tem a mesma forma: “Felizes os…”. Estudiosos concordam que, no grego, falta o elo que, em nossas traduções comuns, une cada ditado. Isso se deve a que Jesus as pronuncia em aramaico-hebraico. No Antigo Testamento, é comum encontrar uma expressão, em forma de interjeição, e que significa: “Que feliz é…!” (Sl 1,1). Essa é a mesma forma que Jesus usa nas bem-aventuranças: “Que feliz é o pobre de espírito…!”. É muito importante ressaltar essa forma, porque significa que as bem-aventuranças não são piedosas exclamações de esperança de um possível futuro, mas são de alegria e encanto por algo que já existe. São felicitações no agora, certamente alcançarão a plenitude na eternidade.

Ao falar da felicidade, não podemos ignorar o desejo, pois nele se encontra a chave da felicidade. Aquele que cobiça e deseja aquilo que não pode alcançar na presente ordem das coisas, aos poucos, submerge-se na amargura, ressentimento e violência. Por outro lado, aquele que orienta suas vontades e desejos pelo bem da felicidade dos outros, esse é quem alcança a felicidade na presente ordem das coisas. De fato, é demonstrado que as pessoas que se preocupam com os demais, as pessoas que lutam para que, neste mundo, haja menos carências, menos injustiças, menos violências e mais paz, justiça e perdão são mais felizes. Pelo contrário, aqueles que se preocupam tão somente com elas mesmas se afundam no egoísmo e na infelicidade.

Os desejos de Jesus se identificam sempre com os anseios dos pobres, dos doentes, dos excluídos… Por isso, multidões seguiam Jesus (Mt 4,23-24; 8,16-17; 9,35; Lc 4,18-21; 4,40-41; 6,17-19). Sem pretensões de “rebaixar” o projeto de Jesus para que cada um tome o que queira, o que buscamos é propor um apelo a subir ao monte, contemplar Jesus e escutar dele como viver nossas relações humanas. Pois, em nossa contemporaneidade, parece irreconciliável individualidade e compromisso social. A sociedade de consumo nos faz acreditar que satisfará tudo e todos, porém o que falaciosamente faz é identificar a felicidade com o estar saciado. Nessa dinâmica perniciosa, a saciedade é a prisão do desejo. Cabe aqui perguntar-se: qual é meu desejo?

É interessante que se comece a falar da felicidade dizendo: “Que felizes são os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). Devemos deixar claro que Jesus não elogia a pobreza material. Ele sempre esteve contra essa classe de pobreza que esmaga pessoas e povos. Jesus elogia os pobres no espírito, isto é, os que reconhecem sua condição humana limitada diante das exigências da vida e colocam em Deus toda sua confiança. O “pobre no espírito” é quem compreende que nenhuma coisa satisfará seu desejo mais profundo, mas somente Deus. E, portanto, faz a vontade de Deus, tornando-se, assim, feliz cidadão do Reino de Deus.

“Felizes os mansos porque herdarão a terra” (v. 4). Em grego, a palavra praus é equivalente a “manso”, e era de um significado elevado na ética. Aristóteles explicou a virtude como o meio-termo entre dois extremos. A virtude da mansidão era então o meio-termo entre muita ira e pouca ira. Entende-se então que é feliz o cristão que, diante da agressão, dos insultos à sua pessoa, não reage com agressividade, porém, quando os outros são ofendidos, ele manifesta indignação. Outro significado para praus é “domesticado”. Quando o animal tinha sido treinado para obedecer ao dono, era tido como manso. Nesse marco, pode dizer-se que é feliz a pessoa que sabe dominar suas paixões e desejos, pois têm domínio sobre eles.

A atual sociedade se arroga por “liberdade”, porém, muitas vezes, estamos prisioneiros de nossas paixões. É imperativo, portanto, sempre se perguntar: sou eu a governar minhas paixões e desejos ou são eles a me governar Chama-me a atenção como as redes sociais concorrem por ocupar o centro de nossa vida. Parece que conhecem nossos gostos e se interessam por nossos sentimentos e pensamentos. Como elas, há outros mecanismos que que buscam é exaltar nosso ego. Mas Deus nos quer felizes e nos convida a sê-lo: “Felizes os mansos…”. O texto das bem-aventuranças é amplo e, para melhor aprofundar a mensagem de cada ensinamento, no artigo de outubro, daremos continuidade a essa reflexão. Entretanto deixemos que o olhar amoroso de Jesus acenda o nosso desejo de felicidade!

Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México e é missionária em Moçambique.

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