No relato ( Lc 19,1-10) do encontro entre a casa e o sicômoro (espécie de figueira), nós nos deparamos com uma unidade bem estruturada. Sua introdução encontra-se na unidade anterior (o cego na entrada de Jericó). Ambos os relatos trazem a palavra “ver” como chave para o discipulado. Nos dois textos, também nos deparamos com dois homens tidos como pecadores, no entanto possibilitados por Jesus para a salvação. A trama inicia-se com as ações de Zaqueu, seguidas pelo diálogo com Jesus. Logo Zaqueu toma uma decisão, pois a salvação se torna ação em bem do Reino. E Jesus conclui, relatando sua missão: “O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (v. 10).
A salvação de Deus irrompe sem que ninguém possa controlá-la:
“E, tendo entrado em Jericó, ele atravessava a cidade. Havia lá um homem chamado Zaqueu, que era rico e chefe de publicanos. Por ele ser de baixa estatura, procurava ver quem era Jesus, mas não o conseguia, por causa da multidão. Correu então à frente e subiu num sicômoro para ver Jesus que passava por ali. Quando Jesus chegou ao lugar, levantou os olhos e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa’. Ele desceu imediatamente e recebeu-o com alegria. À vista do acontecido, todos murmuravam, dizendo: ‘Foi hospedar-se na casa de um pecador!’. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: ‘Senhor, eis que dou a metade de meus bens aos pobres…’” (v. 1-8).
Zaqueu é símbolo da marginalização, pois, pelo fato de ser chefe de publicanos, é tido como “pecador”. Mas, depois de vivenciar a salvação de Deus, torna-se modelo de identificação, sobretudo para os ricos. Cabe destacar que, na obra lucana, avalia-se a riqueza de acordo com o motivo que se tem. Assim, egoísmo, cobiça e avareza são reprovados. Mas se a riqueza for partilhada com as pessoas necessitadas, é considerada boa (cf. Lc 12,33-34; 16,19-31; 18,18-23; At 2,44-46; 4,32-37). No pano de fundo, o autor mostra-nos que a riqueza, em si mesma, embora possa sê-lo, não é o obstáculo para encontrar-se com Jesus e nem impede a salvação.
Nos tempos atuais, ainda ficam resquícios do pensamento que justificava a dominação imperial. Exemplo disso são os discursos maçantes dirigidos sobretudo para manter uma ordem social injusta. Nessa dinâmica perniciosa, faz-se acreditar que estão certos o egoísmo, a cobiça e a avareza; logo a partilha dos bens fica designada apenas a alguns. A inversão dos valores tem levado sociedades a mergulhar no absoluto egoísmo. Os resultados estão se mostrando nas barbáries cometidas contra o ser humano e todo o planeta. Diante dessa realidade, a Palavra salvadora de Deus nos impele a tomar posturas evangélicas de justiça e partilha, como Zaqueu o fez.
Sobre esse tema, ainda há muito a ser dito. A nós, porém, é interessante nos advertir de interpretações reducionistas da Palavra de Deus, pois não podemos seguir sustentando a ideia de que Deus quer pessoas resignadas ao sofrimento, à pobreza e à violência, à espera de, um dia, alcançar recompensa no céu. E, por outro lado, justificar o egoísmo, a cobiça, em detrimento da vida. No encontro com Zaqueu, Jesus ratifica, mais uma vez, que a salvação de Deus começa já nesta vida: “Jesus levantou os olhos e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa’”. O olhar e a palavra jazem atrelados e são imperativos para colocar-nos em movimento rumo à nossa casa.
Portanto, para melhor compreender o encontro que muda a vida de Zaqueu e mudará a nossa, se o permitirmos, cabe-nos observar algumas expressões-chave do texto: “é preciso”, “pressa”, “descer”, “aprimorar”, “hoje”, “ficar”, “receber”, “alegria”. Na Bíblia, essas palavras referem-se especificamente ao plano salvífico de Deus, que deve ser cumprido e, de fato, já está se realizando no decorrer da história. A expressão “ficar” denota duração, isso significa que Zaqueu experimenta a salvação não como um ato isolado, mas como algo que permanece sempre. A partir de então, Zaqueu, como justo, relaciona-se com Deus e com os outros.
É interessante notar o contraste entre o rótulo com o qual Zaqueu é chamado (“Foi hospedar-se na casa de um pecador!”) e seu nome, pois Zaqueu significa “o que é puro”, “o que é inocente”. Jesus se dirige a ele designando-o como filho de Abraão. Quer dizer que o reconduz à condição de eleito de Deus que até então lhe estava negada. “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque ele também é um filho de Abraão” (v. 9b). Observemos que a palavra “hoje” está unida duas vezes à palavra casa, e casa remete à família ou geração. Compreende-se então que a salvação é experimentada também pela família e geração de Zaqueu, ou seja, os filhos de Abraão.
A alegria de Zaqueu, ao sentir-se perdoado e acolhido por Jesus, é tal que reage tomando a firme decisão de partilhar seus bens e fazer justiça: “Senhor, eis que dou a metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei a alguém, irei restituir-lhe o quádruplo” (v 8). O amor misericordioso de Deus faz Zaqueu enxergar, e também a cada um que se sinta verdadeiramente amado, a real necessidade dos pobres e como poder ajudar. Entre o sicômoro e a casa, encontramo-nos com a superação da ideia de que o pecador é alguém rejeitado por Deus. Isso gerou e segue gerando uma reviravolta nos corações, pois verdadeiramente a graça de Deus não tem limites: “Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”.
Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México, trabalhou em Moçambique e colabora na Animação Vocacional.