A narrativa sobre a visita de Jesus a Marta e Maria é própria do evangelista Lucas. Notemos que Lucas é quem mais faz questão de destacar, em seus escritos, como as mulheres, tal como os homens, são objetos da compaixão e da misericórdia divina (cf. Lc 1,46-55; 1,67-79; 7,36-37; 15,4-10). De diversas formas, Lucas insiste em apresentar a mulher, em conjunto com todos os marginalizados e sofredores deste mundo, destinatária da alegre mensagem de salvação trazida por Jesus Cristo aos pobres (cf. Lc 7,11-17; 7,36-50; 13,10-17; 18,1-8). Nesse preâmbulo, analisaremos o trecho de Lucas 10,38-42, o qual se compreende dentro da temática de todo o capítulo dez.
Observemos alguns detalhes importantes da coesão entre as unidades. Nos versículos 1 a 24 (missão dos 72), Jesus enviou dois a dois; Marta e Maria também são duas. Na Parábola do Samaritano (v. 29-37), este levou o ferido à hospedaria-casa. O encontro com Marta e Maria tem lugar na casa (Igreja doméstica). Conclui-se, portanto, que o tema que percorre todo o capítulo é a diaconia e o discipulado na domus eclessiae (Igreja doméstica). No caso que nos compete, a casa é administrada e animada por mulheres: Marta e Maria. Assim, e em vista de uma compreensão mais abrangente, propomos uma tradução que nos parece mais conexa do grego.
Ora, quando iam de caminho, entrou Jesus numa aldeia, e certa mulher, por nome Marta, o recebeu em sua casa. Tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, sentando-se aos pés do Senhor, ouvia sua palavra. Marta, porém, estava arrastada, inquieta, envolta da muita diaconia; e colocando-se por cima, disse: “Senhor, não se te dá que minha irmã me tenha deixado a viver a diaconia sozinha? Dize-lhe, pois, que me ajude”. Respondeu-lhe o Senhor: “Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas; uma, porém, é necessária; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”.
Os versículos 38 a 40a constituem a exposição da cena com as informações sobre os fatos: o tempo (quando iam de caminho à Jerusalém); as personagens (Jesus, os discípulos, Marta e Maria); seus estados (Jesus indo de viagem com os discípulos; Marta aflita com a diaconia; e Maria exercendo o discipulado); as primeiras ações (Jesus chegou, Marta o recebeu, Maria, a irmã de Marta, sentou-se aos pés de Jesus). É interessante observar que os outros discípulos saem da cena, ficando sós as duas irmãs e Jesus. Além do mais, o autor dirige nossa atenção para o conflito que contrapõe ambas as irmãs, por razão do Senhor Jesus.
Marta recebe Jesus em sua casa, o verbo ὑπεδέξατο (receber) está no indicativo aoristo da terceira pessoa do singular. Pelo que é possível deduzir a independência familiar de Marta, ela não pertence ao pai ou ao esposo, pois então seriam eles que receberiam Jesus e a Igreja (cf. Gn 18,1-9). Logo, uma leitura que sustente que o papel de Marta é de uma empregada doméstica deve ser posto em dúvida. Além disso, no texto, não se fala de uma casa particular, mas, pelo conflito nela suscitado, o mais provável é que se trate de uma domus eclessiae da qual Marta é a autoridade. Isso deixa em claro que as igrejas, no começo, eram lideradas por ambos: homens e mulheres.
Em épocas recentes, temos acompanhado reflexões sobre o papel da mulher na Igreja e sociedade. Mas, na prática, continua-se relegando a mulher aos serviços domésticos ou, o que é mais dramático, ao papel de escrava do homem e, portanto, objeto no qual ele descarrega sua violência. Percebe-se que ainda há um longo caminho para desmitificar os papéis de gênero pelo bem da igualdade. Por isso é mister, sobretudo aos cristãos, perceber a mensagem que, por meio dessas duas mulheres, Marta e Maria, ícones da comunidade, Lucas nos apresenta. Aliás, o evangelista faz questão de mostrar, ao longo de seus escritos, que, no Reino de Deus, homens e mulheres têm o mesmo lugar.
Maria está sentada aos pés do Κυρίου (Senhor), escutando diretamente sua palavra. Lembremos que era costume dos judeus (homens) sentar-se para aprender dos rabinos, porém a mulher ficava longe e somente podia conhecer a lei por meio do marido. Na comunidade de Jesus, contudo, a mulher não precisa de intermediário. Ela mesma é inclusa como discípula que escuta e apreende a Palavra (o magistério de Jesus). Entretanto notemos que surge aqui a questão central do conflito, pois o tempo que Maria dedica a aprender faz com que a carga das funções recaia nas costas de Marta. “Marta, porém, estava arrastada, inquieta, envolta da muita diaconia” (v. 40a).
Ora bem, entende-se a diaconia no sentido eclesial (pregação da Palavra, administração da comunidade). Marta está sobrecarregada com o serviço da administração e pede a Jesus que intervenha ante Maria, para que a ajude, porém Jesus responde inversamente e, em vez de enfrentar-se com Maria, enfrenta-se com Marta, mostrando-lhe a raiz de sua inquietação. “Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas; uma, porém, é necessária; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada” (v. 42). Jesus não repreende Marta, mas a conduz a perceber o risco de dispersão em que se encontra.
O esforço pela organização eclesial e perfeição externa das obras pode afastar da raiz da Palavra, da fonte do Senhor. Quando isso acontece, caímos no legalismo que destrói tanto a quem exerce o serviço como a quem o recebe. Diante do muito serviço que preocupa Marta, Jesus destaca o valor de uma coisa, e Maria o sabe, trata-se da busca do Reino (cf. Lc 12,31; Mt 6,33). “Uma, porém, é necessária; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada” (v. 42). A única coisa necessária não pode ser entendida como um simples sentar-se para rezar, mas se trata de acolher Jesus para segui-lo e viver de sua Palavra.
O Evangelho, quando traduzido em formas de serviço que distraem e perturbam, provocará conflitos na comunidade. Entretanto, o Evangelho não é imposição, mas acolhida responsável; não é desgraça, mas é graça. Maria o sabe, por isso escolheu sentar-se aos pés de Jesus, e o Senhor, além de confirmar a preferência de Maria, promete-lhe que ninguém poderá arrebatar dela essa opção. Ninguém, por mais que tome o “domínio”, poderá tirar-nos a liberdade de escolha, a capacidade de escuta da Palavra, com tudo o que isso significa: autonomia de pensamento e vida, e capacidade de decisão: “Felizes os que escutam a Palavra e a põem em prática” (cf. Lc 11,28b; 8,21).
Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México, trabalhou em Moçambique e colabora na Animação Vocacional.