O encontro que me fez escutar e proclamar (Mc 7,31-37)

O relato da cura do surdo gago (ler o texto Mc 7,31-37) está estrategicamente inserido logo após o diálogo de Jesus com a mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30) e antes da segunda multiplicação dos pães (Mc 8,1-10). Provavelmente o autor quer mostrar aos leitores que é por meio de Jesus que os ouvidos dos gentios podem ser abertos à escuta da boa notícia divina, e suas línguas podem ser desatadas para proclamar a Palavra de Deus. A narrativa começa descrevendo uma interessante viagem, pois Jesus está indo de Tiro ao território que rodeia o mar da Galileia. Quer dizer que, de Tiro, no Norte, dirige-se à Galileia, no Sul. À primeira vista, parece uma travessia ilógica, entretanto pode ser que essa longa viagem seja proposital. O que permitiria a Jesus ter um tempo mais prolongado para preparar seus discípulos antes do fim iminente.

A trama desenvolve-se na seguinte sequência: descrição do itinerário geográfico (v. 31); os mediadores apresentam o surdo gago e imploram a imposição das mãos (v. 32); Jesus de quem se espera que ponha a mão sobre o surdo; o ritual da cura (vv. 33-34); o efeito curativo do ritual (v. 35); o encargo por parte de Jesus e a reação do povo (vv. 36-37). É interessante, porém, que não é novidade que as personagens “mediadoras” sejam inominadas, pois isso ocorre também em outras passagens (Mc 1,32; 2,3; 6,55-56; 10,13-16). Compreende-se, portanto, que o interesse do autor, mais que destacar os mediadores, é evidenciar que o mal em questão é de caráter coletivo. Quer dizer, a enfermidade desse homem está afetando todo o grupo. Portanto mediar é uma disposição de buscar o bem da comunidade.

Anteriormente dizemos que esse percurso foi um tempo de instrução aos discípulos, por isso chama nossa atenção que, subitamente, eles desaparecem da trama. É provável que sua ausência queira expressar uma atitude de incompreensão com seu mestre. Os discípulos reaparecem no texto quando Jesus os chama (cf. Mc 8,1). Por sua vez, o enfermo encontra-se numa situação de passividade e isolamento, pois nem recebe, nem comunica. A condição de surdez e gagueira o priva da palavra. Dessa forma, ele está condenado às margens da história de uma vida recriada por Deus. Se bem que o verbo μογιλάλον não indica surdez, mas sim dificuldade para falar. Provavelmente isso seja indício de que nem sempre ele foi surdo. Algo deve ter acontecido em sua vida que o tornara surdo.

Vivemos numa sociedade global, em que as mídias sociais têm atingido amplos níveis, encurtando distâncias. Porém, nesse novo cenário, a visão das pessoas se ofusca ante a vastidão de informação. Além disso, quando as mídias estão atreladas ao sistema hegemônico, distorcem a informação para garantir domínio do sistema. A consequência é que quase não mais conseguimos distinguir o bem do mal. De alguma forma, ficamos surdos e gagos. Quase ninguém mais escuta os gritos dos pobres; dos que têm fome; dos que são injustiçados, escravizados; o grito das crianças e mulheres violentadas; o grito da terra e da natureza explorada. Para contrariar esse sistema de morte, é imperativo que se abram nossos ouvidos e se solte nossa língua. É mister ser curados por Jesus para recuperar o poder da palavra.

No Oriente Antigo, a palavra tinha um poder que chegava a repercutir nas realidades das coisas da vida. Era como se tivesse uma força de destruição e uma força de vida. Isso nos ajuda a compreender o que os evangelhos querem dizer quando neles se indicam a força e a eficácia que tinha a palavra de Jesus. Em Jesus, o dizer e o fazer se identificavam e se fundiam de tal forma e tal extremo que o que Ele dizia e o que fazia dava vida e libertava as pessoas de seus males. A unidade da palavra e da ação consiste em que Jesus mesmo é a “Palavra de Deus” (Jo 1,1). Em Jesus Deus se expressa e se dá a conhecer. Por isso nele se manifesta a força de vida, de saúde, de plenitude da existência. “Colocou os dedos nas orelhas dele e, com a saliva, tocou-lhe a língua. Depois, levantando os olhos para o céu, gemeu e disse: ‘Effatha’, que quer dizer ‘Abre-te!’” (vv. 33-34).

O gesto de Jesus, segundo alguns estudiosos, é ritual simbolizando o processo de cura do surdo gago. As ações realizadas por Jesus (Ele o levou à parte, colocou os dedos nas orelhas, com saliva lhe tocou a língua, levantou olhos ao céu, gemeu e falou) devem ser compreendidas no marco bíblico e sociocultural da época. A expressão idiomática “a sós” ocorre frequentemente em Marcos, em cenas nas quais os discípulos estão a sós com Jesus (cf. Mc 4,34; 6,31-32; 9,2-28; 13,3). Nesse trecho, é a única vez que essa expressão é usada com outra pessoa. Naquela época, atribuía-se poder curativo à saliva, sobretudo a saliva das pessoas influentes. Por isso, cuspir nas partes enfermas era algo comum naquela época. O gesto de levantar os olhos é realizado quando Jesus quer estabelecer um diálogo com o Pai (Mc 6,41). O gemido é sinal de quem está em profunda oração.

Além dos gestos, Jesus pronuncia uma palavra “Effatha”, que o autor traduz como “Que se abra”. Pelo fato de o verbo aramaico effatha estar no singular, acredita-se que a expressão esteja dirigida à totalidade do homem e não somente aos órgãos da palavra e audição. A expressão “e falava corretamente” confirma a inserção dele no grupo com o qual se poderia comunicar. Porém, agora que o homem podia se comunicar, Jesus pediu às testemunhas não falar. Porém eles, ao invés de calarem-se, apregoam maravilhas que Jesus realizava: “Ele fez tudo bem…”. Nessa afirmação, encontra-se o reconhecimento do cumprimento da profecia anunciada em Isaías 35,5. O interessante é que, nesta ocasião, a proclamação é feita pelos gentios e não pelo povo da Aliança. Dessa forma, Marcos dá um giro ao exclusivismo isaiano.

A difusão da boa notícia sobre Jesus não é exclusividade de um grupo seleto e não pode ser contida; ela deve ser proclamada. Que, como o surdo gago, também nós nos sintamos encontrados, reconhecidos, resgatados, tocados por Jesus para que nos abramos a uma nova sabedoria e a um novo entendimento. E que, maravilhados pela ação recriadora de Jesus, proclamemos com nossas vidas: “Ele fez tudo bem; faz tanto os surdos ouvirem como os mudos falarem”.

Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México e é missionária em Moçambique.