A passagem de Jesus e a adúltera insere-se na narrativa das conversas entre Jesus e os “judeus”, inclusive interrompe esses debates. Os estudiosos se questionam sobre o sentido de a perícope encontrar-se justamente nessa seção. O tema em si mesmo é incomum no quarto Evangelho. Além do mais, a forma literária (apotegma ou paradigma) em que se expressa é um gênero mal atestado no restante do escrito joanino. Chama-nos também a atenção a mudança na atitude de Jesus. Nas seções anterior e posterior, nós o vemos discutindo; aqui, porém, fica calado e, somente no fim do episódio, toma a palavra. Uma das hipóteses explica que a razão de essa perícope estar nessa seção está em seu conteúdo. Entretanto, antes de seguir com a apreciação do texto, propomos sua leitura, para melhor acompanhar os comentários.
7 53E cada um voltou para sua casa. 8 1Jesus foi para o Monte das Oliveiras. 2De madrugada, voltou ao templo, e todo o povo se reuniu ao redor dele. Sentando-se, começou a ensiná-los. 3Os escribas e os fariseus trouxeram uma mulher apanhada em adultério. Colocando-a no meio, disseram a Jesus: 4“Mestre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. 5Moisés, na lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu que dizes 6Eles perguntavam isso para experimentá-lo e ter motivo para acusá-lo. Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever no chão com o dedo. 7Como insistiram em perguntar, Jesus endireitou-se e disse: “Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra!”. 8Inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão. 9Ouvindo isso, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos. Jesus ficou sozinho com a mulher que estava no meio em pé. 10Ele se endireitou e disse-lhe: “Mulher, onde estão eles Ninguém te condenou”. 11Ela respondeu: “Ninguém, Senhor!”. Jesus então lhe disse: “Eu também não te condeno. Vai e, de agora em diante, não peques mais”.
Em 7,53-8,1-2, temos a conclusão da perícope anterior, e a introdução à seguinte cena. Nesta, os agentes da ação são os escribas, os fariseus, a mulher, Jesus e, provavelmente, também a presença de uma multidão que estaria ouvindo os ensinamentos de Jesus. A narrativa pode ser dividida da seguinte forma: vv. 3-6b, descrição o inquérito dos fariseus e escribas; vv. 6c-8, a reação de Jesus; e, nos vv. 9-11, o desenlace. O quadro está emoldurado de elementos-chave, tais como “ir para casa-templo”, os interlocutores vão para casa; “o Monte das Oliveiras”, nos sinóticos, há referências de Jesus dirigir-se, nas noites, ao Monte das Oliveiras (cf. Lc 21,37); “na madrugada, ou dia seguinte”, essa expressão realça a autoridade dos ensinamentos de Jesus. Há outros elementos que, por sua importância, merecem uma explicitação mais ampla.
Chama nossa atenção, sobretudo, a reação de Jesus diante dos acusadores: “Jesus começou a escrever no chão com o dedo” (v. 6c). “Inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão” (v. 8). Qual é o sentido desse movimento de Jesus Que significa escrever com o dedo no chão O que será que ele escreveu Em O Evangelho segundo João, Johannes Beutler, considera a observação de Thomas O’Loughin. Esse estudioso, por sua vez, trouxe à tona a leitura comparativa feita por Santo Agostinho, entre João 8,1-11 e a escrita do Decálogo. Lembremos que é no Decálogo que se assentam as bases de julgamento contra o adultério. O adultério era tido como um dos três pecados mais graves, portanto a Lei a seu respeito era a pena de morte (cf. Lv 20,10; Dt 22,23-24).
Na época de Jesus, quando surgia algum problema legal difícil, costumava-se levá-lo aos rabinos, para que estes tomassem uma decisão. Dessa forma, compreende-se que os escribas e fariseus se aproximaram de Jesus como a um rabino. Trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério. Eles tinham razão em sua acusação, mas, observando atentamente a trama, percebe-se que faltam elementos para um processo formal de julgamento contra um caso de adultério, pois o parceiro, que igualmente deveria ser submetido à ação, estava ausente (cf. Lv 20,10; Dt 22,22-24). Isso leva a supor que o problema em questão era bem mais complexo. A cena traz o tom acusador, porém o foco da acusação é Jesus e não a mulher. O texto diz que os escribas e fariseus queriam experimentar e acusar Jesus.
Jesus é colocando diante de um dilema, se concordasse com os escribas e fariseus que era preciso apedrejar a mulher, estaria contradizendo-se em seu amor e sua misericórdia. E ainda estaria atentando contra a lei romana, pois, sendo judeu, não tinha poder de impor a pena de morte. Se, pelo contrário, ele dissesse que era preciso perdoá-la, seria acusado de desobedecer à Lei de Moisés. É evidente que os escribas e fariseus pretendiam fazer Jesus cair numa armadilha. Diante desse cenário, a resposta de Jesus foi decisiva, porém Jesus se calou, curvou-se e escreveu com o dedo no chão. Seguindo a leitura comparativa de Santo Agostinho, estamos diante de um contraste entre a escrita em pedra do Decálogo e a escrita de Jesus na areia. Será essa diferença a grande mensagem dessa perícope?
Em todas as épocas, as leis surgem visando a garantir o desenvolvimento integral dos indivíduos e das coletividades. Pois, quando a vida se vê ameaçada, requer mecanismos que a resguardem. Desse modo, em todas as sociedades, as leis se tornam necessárias. Entretanto, quando essas leis são manipuladas em benefício de uns poucos ou de alguma instituição, elas se tornam instrumentos de opressão e morte, sobretudo para os mais indefesos. Mas Deus não abandona. Ele, de diversas formas, impele-nos à conversão. Deus continuamente suscita no coração das pessoas a chama profética em favor da vida ameaçada (cf. Is 1,21-23; 58,3-7; Am 2,6-8; 5,10-12; Mq 3,1-4). No silêncio de Jesus, podemos ler a atitude profética de denúncia: “Por isso o sábio se cala neste tempo, porque é tempo de desgraça” (Am 5,13). O silêncio profético é um grito de denúncia contra a injustiça.
Além do mais, o gesto desconcertante de Jesus de inclinar-se e escrever na areia obriga os acusadores a repetir a pergunta. Será que Jesus dá tempo para que os escribas e fariseus percebam a maldade escondida em seus corações Ou será que os está confrontando com a própria lei na qual eles escudam sua perversidade O poder e as leis preservados num coração de pedra matam. E, em vez disso, na areia, a escrita se apagada rapidamente, deixando novas possibilidades de voltar a escrever. Com essas imagens da pedra e da areia, é mais fácil compreender os ensinamentos de Jesus sob a Lei mosaica. Pois, se a lei não mais resguarda a vida, é necessário repensá-la e reescrevê-la de modo que cumpra seu objetivo.
Jesus responde: “O homem que esteja sem pecado seja o primeiro em atirar a pedra”. Sabiamente Jesus inverte a acusação, de modo que os acusadores olhem para sua verdade profunda. Eles ficam em silêncio. Desta vez, trata-se do silêncio da vergonha pelo pecado. Pois Jesus os conduz ao cerne da Lei mosaica (cf. Êx 20,13), e não mais podem esconder-se nela. Jesus e a mulher, que por ninguém foi condenada, ficam a sós. A expressão “De agora em diante, não peques mais”, não supõe necessariamente a culpa da mulher (cf. Jo 5,14). Destarte, mais uma vez, nós nos deparamos com o rosto misericordioso de Deus que quer a vida do pecador e não sua morte. Como seguidores de Jesus, devemos aprender a escrever na areia, preferindo sofrer a injustiça a perpetrá-la, então seremos testemunhas críveis da transcendência.
Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México, trabalhou em Moçambique e colabora na Animação Vocacional.