Solenidade da Ascensão do Senhor

“Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade”
Marcos 16,15-20

O texto de Marcos (16,9-20), que contém o fim desse Evangelho, interrompe o fio da narração precedente. É muito diferente em estilo e vocabulário do resto do Evangelho e está ausente dos melhores e mais antigos manuscritos. Por isso, normalmente está designado nas nossas bíblias como “Apêndice”, provavelmente escrito no segundo século e baseado sobretudo no capítulo 24 de Lucas, com alguma adição de João 20 e com referências de fatos narrados nos Atos dos Apóstolos. Embora não acrescente nada de novo para uma melhor compreensão de Jesus e dos acontecimentos pós-pascais, traz elementos muito importantes para a vida da Igreja hoje.

Destaca-se muito o mandamento missionário de Jesus, o de levar a Boa-Nova para toda a humanidade (Mateus 28,18-20). A Igreja é, por sua natureza, missionária, e uma Igreja que descuidasse desse mandado estaria traindo sua identidade. Porém se faz necessário distinguir entre “missão” e “proselitismo”.

Igrejas proselitistas têm como meta angariar para si fiéis de outras igrejas. Giram ao redor de si mesmas, identificando sua Igreja institucional com o Reino de Deus. Uma Igreja missionária tem como objetivo levar a Boa-Nova do Reino para todas as culturas e religiões, respeitando-as, sendo testemunha dos valores do Reino de Deus e ajudando a pessoas de boa vontade a descobrirem a presença do Reino (e do antirreino) em suas próprias culturas e tradições religiosas.

Um aprofundamento desse mandado vai nos fazer lembrar que nós não somos donos da missão. A missão é do próprio Deus, cujo Filho Jesus foi o primeiro missionário da Trindade. Ele deixou uma comunidade de discípulos e discípulas para continuar sua missão da implantação do Reino de Deus, e nós somos herdeiros dessa missão. A serviço dela existem diversos carismas, ou dons do Espírito Santo, para o bem de todos.

Mas ninguém está dispensado dessa tarefa missionária, fechando-se em sua própria comunidade, movimento ou Igreja; pelo contrário, devemos sentir-nos unidos aos irmãos e irmãs do mundo todo, e comprometidos com a construção da sociedade justa e solidária que será uma concretização da Boa-Nova do Reino de Deus.

O objetivo da missão, a longo prazo, é reunir a humanidade inteira no Reino de Deus (que ultrapassa as fronteiras da Igreja visível). Nós o fazemos pela proclamação explícita da Boa-Nova e no estabelecimento de um diálogo respeitoso com membros de outras tradições religiosas, convidando homens a mulheres a pertencer a uma comunidade de testemunho e serviço, e levando a cada ser humano a missão divina de uma salvação integral.

O texto explicita alguns elementos importantes nessa atividade missionária: “expulsão de demônios”: expulsando da convivência humana os sinais do mal, do antirreino, que escraviza e oprime milhões de pessoas, por meio de estruturas econômicas, sociais e até religiosas de exclusão; “falando línguas”: como em Pentecostes, criando uma língua do diálogo e respeito, a linguagem do amor, justiça e solidariedade; “vencendo veneno”: superando tanto o veneno semeado durante milênios na convivência humana, expressado pelo racismo, machismo, clericalismo e todos os “ismos” que excluem e nos dividem; “curando doentes”: lutando, na prática, para que “todos tenham a vida e a tenham plenamente” (João 10,10), como fez Jesus, não somente fazendo curas individuais, mas restaurando a saúde integral, das pessoas e da Criação, mediante a vivência comunitária e individual do projeto de Jesus. Seria trágica se esses elementos ficassem reduzidos à busca de “milagres” duvidosos, à falação de supostas “línguas dos anjos” e à satanização de tudo, confundindo expressões de desequilíbrio emocional com a presença diabólica.

Durante séculos, muitas vezes, os cristãos do Brasil (e de muitas outras regiões) têm se acomodado com a vivência de uma religião individualista, acomodada e frequentemente alienada dos problemas do mundo. Vivíamos uma separação artificial entre o mundo e o espiritual, entre a prática religiosa e a transformação social. O mandado de semearmos a Boa-Nova do Reino nos ajuda para que sejamos mais fiéis a Jesus, não somente à sua pessoa, mas também à sua prática e mensagem, levando a Boa Notícia do Reino a toda a humanidade.

Padre Tomaz Hughes, SVD, biblista e assessor da CRB e do Cebi. Dedicou-se a cursos e retiros bíblicos em todo o Brasil. Publicou diversos artigos e o livro “Paulo de Tarso: discípulo-missionário de Jesus”. Faleceu em 15 de maio de 2017. Suas reflexões bíblicas são muito atuais.

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