Quando no incêndio que, em 1519, destruiu a Igreja de São Marcelo al Corso o crucifixo saiu ileso, o povo romano tomou nota. Tanto que, três anos mais tarde, quando a cidade foi atingida pela peste, o crucifixo foi levado em procissão por 16 dias, pelas ruas de Roma. A cada dia, o contágio regredia e, quando ele voltou a São Marcelo, a peste tinha desaparecido.
Esse mesmo crucifixo foi exposto na sexta-feira, 27 de março último, ao dilúvio da noite romana, como arma simbólica contra o novo coronavírus. As câmeras demoravam sobre o busto antigo do Cristo, regado pelas gotas. Só na Itália estavam ligados aproximadamente 8 milhões de televisores. As imagens estavam perfeitas, e os comentários dos repórteres: oh, que poder de imagem! Oh, as lágrimas do céu se unem às do povo! Oh, trágica maravilha!
Parece que o crucifixo está muito danificado, talvez irremediavelmente danificado. Dizem que a madeira pode explodir. Esse crucifixo que tinha vencido o fogo e a peste cai por uma chuva romana no fim de março. Homens de máscaras fazem o triste depoimento. E será que esse não é o verdadeiro sinal e o penoso trabalho de decifrá-lo: talvez Deus esteja tão cansado, talvez devêssemos consolá-lo?
Essas frases de Leonardo Lenzi e a foto me tocaram profundamente. Lembrei-me de um dos pensamentos de Etty Hillesum, a jovem judia cujos diários e cartas descrevem a vida em Amsterdã, durante a ocupação alemã. Nascida em 1914 na Holanda, foi morta em novembro de 1943, no campo de concentração de Auschwitz.
“Quero ajudar, Deus, para que você não me abandone, mas não posso garantir nada com antecedência. Apenas uma coisa está ficando cada vez mais clara para mim: que você não pode nos ajudar, mas que temos que ajudá-lo e, no final, nos ajudarmos. É a única coisa que importa: salvar um pedaço de ti dentro de nós mesmos, Deus. E talvez possamos ajudar a ressuscitar-te nos corações aflitos de outras pessoas.
Sim, meu Deus, parece que também você não seja capaz de mudar muito as circunstâncias, elas simplesmente fazem parte desta vida… E, quase com cada batimento cardíaco, fica claro para mim que você não pode nos ajudar, mas que temos que ajudá-lo e defender, até o fim, sua morada dentro de nós.”
Talvez, nestes tempos, seja realmente necessário ajudar Deus a carregar a cruz. Ajudá-lo, defendendo sua morada dentro de cada um, cada uma. Ajudá-lo para que sua presença volte a ser lembrada e sentida. Ajudá-lo para que o corpo possa voltar a ser digno e sagrado. Ajudá-lo para que o corpo humano possa ser compreendido como parte do corpo cósmico, digno e sagrado.
Que, nesta Semana Santa, possamos ajudar Deus a levar cada um, cada uma mais perto de si e dos outros. Assim nos aproximaremos do Divino.
Ir. Petronella Maria Boonen (Nelly) é co-fundadora da linha de Perdão e Justiça Restaurativa do CDHEP e doutora e mestra em Sociologia da Educação pela USP.)