O episódio do encontro entre Jesus e o endemoniado de Gadara é como uma luz para humanizar a nossa sociedade globalizada. Pois, certamente, temos alcançado amplo desenvolvimento nos diversos campos da medicina. Destarte muitas doenças já foram superadas ou se tornaram de fácil controle. Entretanto outras adquiriram maior extensão, como é o caso das doenças psíquicas.
Diante desse cenário, cabe perguntar-nos: como as doenças afetavam as pessoas no tempo de Jesus? Que faziam elas para recuperar a saúde? E, na nossa sociedade de hoje, quais são as doenças que mais nos comprometem? Que estamos fazendo para recuperar a saúde?
Na época de Jesus, a doença ia além de um fato biológico, pois tinha a ver com a incapacidade de viver como filhos de Deus. Imaginemos a dor profunda das pessoas pelo fato de pensarem que tinham sido abandonadas por Deus. Isso, além de estigmatizá-las, permitia que fossem excluídas da convivência social. É o caso do endemoniado gadareno (ler o texto de Mc 5,1-20), que é refletido neste breve escrito.
No episódio relatado em Marcos, não se trata da cura de uma doença. Refere–se a um exorcismo cheio de detalhes que devemos observar com atenção, para compreender sua estreita relação com a doença (outra margem do mar, terra pagã, sepulcros, espírito imundo, porcos).
No intuito de compreender o significado desse exorcismo, devemos considerar a forte influência que a Palestina recebera da cultura mesopotâmica por volta dos séculos III a.C. e I d.C. Isso fortalecera o fenômeno das possessões por espíritos ou demônios (daimonia). Acreditavam tratar-se de uma série de forças personificadas que tomavam conta dos indivíduos, podendo influenciar e controlar sua existência, além de produzir enfermidades e trazer os males.
Porém há contextos culturais em que não se pode protestar contra as injustiças e opressões. Nesse marco, o corpo expressa a queixa contra a sociedade “doente”: “E andava sempre, de dia e de noite, clamando pelos montes e pelos sepulcros, e ferindo-se com pedras” (v. 6). É possível que os indivíduos que sofram opressão nem sejam conscientes da origem de sua condição, mas o fenômeno da “possessão” revela a intensa pressão política e familiar em que se encontram.
Perante esses fatos, necessitamos nos perguntar: os estigmas que as sociedades modernas têm para todos os que se rebelam contra a injustiça favorecem a revisão do sistema ou mantêm esse sistema? Quando se outorga um papel marginal às vítimas do sistema opressivo (revoltosos, depressivos, delinquentes, migrantes, viciados, feministas, etc.), a violência se torna o veículo para a manutenção da ordem social injusta. Não é por acaso que triunfem os discursos que fomentam a violência em vistas da segurança nacional e individual.
Na sociedade de Jesus, não era diferente, portanto as curas e exorcismos que ele fez suscitaram forte oposição da elite. Isso porque Jesus desafiava o sistema ideológico, tanto político como religioso, e propôs outra forma de entender as relações sociais e outra concepção de Deus.
A figura do endemoninhado gadareno denuncia as consequências de um sistema que submete e escraviza. Seu nome “Legião” representa a violência global sistematizada e legalizada. E Jesus manda o espírito sair dele, ou seja, Jesus o liberta, o humaniza, desafiando o sistema de morte.
A travessia da posição do endemoniado à proposta libertadora de Jesus rompeu o círculo da violência. Em nossa realidade, as pessoas também estamos submetidas a ideologias contrárias de nossa condição. É impactante a violência na que estamos submergidos, vítimas ou vitimários, vemo-nos imobilizados quando justificamos essa violência. Por isso nós também devemos ter a coragem de sair ao encontro de Jesus e fazermos a travessia de sair de nossos estreitos pensamentos para acolher a proposta libertadora do Senhor.
Irmã Juana Ortega, SSpS, é teóloga especializada em Bíblia. Nasceu no México, trabalhou em Moçambique e colabora na Animação Vocacional.