Um Primeiro de Maio diferente

O Primeiro de Maio de 2020 foi celebrado de forma completamente diferente dos anos anteriores: sem poderem reunir-se, os trabalhadores fizeram uma programação nas redes sociais que se iniciou às 11h30min, com um culto ecumênico, e depois com a fala das principais lideranças nacionais e apresentação de muitos artistas que apoiam a causa da justiça e os direitos dos trabalhadores.

Mais uma vez, nosso querido Papa Francisco exerceu sua corajosa profecia e, numa mensagem aos movimentos sociais do mundo todo, no dia 10 de abril, manifestou sua solidariedade aos trabalhadores, especialmente aos informais, neste período de pandemia. Francisco os definiu como “um exército invisível que combate nas trincheiras mais perigosas”.

Graças a Deus, nosso Papa, diferente de alguns governantes cruelmente indiferentes ao sofrimento e às mortes, sabe que as vítimas principais desta crise são os pobres, os trabalhadores que, muitas vezes, vivem entre o desespero da fome e a ameaça desta doença mortal. “Sarar, cuidar e compartilhar” é o desafio que Francisco propõe a todos nós que nos reconhecemos seguidores de Jesus.

A grande pandemia vem pôr em questão toda a organização da economia mundial, toda forma de exploração dos recursos naturais, nossa relação com a Mãe Terra e a própria relação entre nós. O grande dogma do neoliberalismo, do poder material, cai por terra, e as fortalezas dos impérios do dinheiro mostram sua fragilidade.

A emergência sanitária demonstra, ao mesmo tempo, a importância da pessoa e do trabalho humano. Quando hordas de inescrupulosos fazem as carreatas exigindo a abertura de seus comércios a qualquer preço, confessam que, sem o trabalho, seu capital não serve para nada e que pouco se importam se mais gente é infectada ou morta, porque é preciso que o trabalho faça girar sua máquina de lucro.

O Primeiro de Maio vem nos lembrar, assim, a primazia do humano, a nobreza do trabalho que completa a obra da Criação. Por isso, nessa data, temos de exigir que, diante de uma crise tão grave, os governantes devem tomar as medidas para defender a vida de seu povo, seja com medidas sanitárias, seja com providências econômicas que socorram as famílias dos trabalhadores desempregados, daqueles momentaneamente afastados de seus postos de trabalho devido à pandemia, dos marginalizados, a população que vive nas ruas…

É ainda o Papa quem defende a instituição de um “salário universal que reconheça e dê dignidade às nobres tarefas que desempenham… que nenhum trabalhador fique desprovido de direitos”.

Oxalá a Igreja no Brasil e todos nós sigamos as orientações de Francisco, encarnação viva de Jesus, e façamos da luta pela Justiça e da solidariedade concreta nossa prática cristã cotidiana. Para isso é preciso que cada comunidade, cada cristão se proponha, neste Primeiro de Maio, a engajar-se numa ação de solidariedade, seja ela com o recolhimento de alimentos, artigos de higiene pessoal para distribuição a nossos irmãos trabalhadores vítimas da injustiça e da indiferença, seja com a partilha do pão da Palavra, da orientação, da informação a respeito de seus direitos essenciais.

Gilberto Carvalho
Graduado em Filosofia e Teologia com especialização em Gerenciamento Público. Ligado à Pastoral Operária (da Igreja Católica), desempenhou diversas funções no Partido dos Trabalhadores (PT) e é Ex-Secretário Geral da Presidência da República.

O trabalho em foco

A adoção da tese do realismo periférico pelos governos neoliberais desde 2016 no Brasil impulsionou a busca de vantagens competitivas assentadas na redução dos custos de produção, especialmente do trabalho. Para tanto, o estabelecimento de uma nova disciplina na organização do trabalho cada vez mais desregulado.

Nesse sentido, o abandono, após mais de uma década, da perspectiva de projeto nacional e do protagonismo mundial evidenciado pelos governos petistas tem revertido o padrão de relação salarial da força de trabalho assentado à estrutura verticalizada da produção industrial, cada vez mais terceirizada. Em decorrência, o esvaziamento das estruturas de representação de interesses dos operários e da burguesia industrial até então referências de compromissos políticos passados em torno do desenvolvimento brasileiro.

Retorno ao receituário neoliberal

Com o retorno ao receituário neoliberal, a desregulamentação defensiva ganhou centralidade, pois voltada a alternativas para o trabalho assalariado frente à fuga da indústria e à pretensa expansão dos serviços cada vez mais industrializados. Para tanto, a difusão ideológica da meritocracia do empreendedorismo visando a converter o trabalhador em empresário de si próprio nas atividades de prestação de serviços.

A dominância da concorrência exposta em escala individual extremada iria se descolar da necessidade do Estado, cabendo a cada um negociar no mercado a venda de serviços multifuncionais. Assim, as exigências de competitividade individual reforçariam as providências de dispor ativos próprios, como o certificado de formação (diploma educacional) e comprovantes de seguros na saúde, assistência e previdência social, não mais incorporado ao contrato de trabalho salarial entre empregado e empregador.

Da privatização do Estado para a privatização dos direitos sociais

Diferentemente do programa neoliberal da “Era dos Fernandos” (Collor, 1990-1992; e Cardoso, 1995-2002), quando o foco recaiu na privatização do Estado, os governos após golpe de Estado de 2016 concentram-se na privatização dos direitos sociais e trabalhistas. Nesse sentido, o fim dos serviços públicos, incialmente por sua asfixia orçamentária, propulsora do rápido rebaixamento da oferta e sua qualidade, e na sequência, sua privatização, abriria nova modalidade de expansão capitalista fundamentada no empreendedorismo dos serviços.

Enquanto avança a desregulamentação defensiva, o Brasil assiste ao acelerado descompasso entre a internacionalização do padrão de consumo cada vez mais excludente das massas empobrecidas e a especialização da estrutura produtiva dependente do extrativismo mineral e vegetal, acompanhado do maior barateamento possível do custo da mão de obra. Sinal disso pode ser traduzido nas informações a respeito da expansão recente da subutilização da força de trabalho no Brasil.

Atualmente, a subutilização do trabalho, que atinge um a cada quatro brasileiros, era apenas um pouco mais de 1/7 da força de trabalho no ano de 2014. Com isso, o Brasil que representava 5,3% do total de trabalhadores subutilizados no mundo, em 2014, passou a responder por 9% em 2019, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“A subutilização do trabalho tende a revelar a reorganização do processo de trabalho”

Ainda que o desemprego aberto possa ser mais evidente como evidência do problema social de um país sem vigor econômico, a subutilização do trabalho tende a revelar a reorganização do processo de trabalho, não mais associado à estrutura produtiva, mas ao dinamismo do consumo. Ao contrário do posto de trabalho até então relacionado à atividade de vender o que era produzido, passa a ser privilegiada a ocupação pertencente ao ato de fazer fundamentalmente o que pode ser vendido.

Por isso, a subutilização do trabalho revela o subemprego relacionado ao tempo, pois referente à menor jornada possível em termos de acesso a ganhos de rendimentos que busquem superar a linha de pobreza. Da mesma forma, a força de trabalho potencial, que embora afastada marginalmente da atividade por desalento, por exemplo, permanece à disposição para o trabalho, como contrato intermitente (on demand).

Na outrora sociedade urbana e industrial, a condição de cidadania portadora de direitos sociais e trabalhistas garantidos pelo Estado era determinada pela forma da inserção produtiva (emprego assalariados formal). Pelo atual ingresso antecipado na sociedade de serviços, a inserção na relação de prestador de serviços transforma-se no elemento de legitimação da cidadania cada vez mais demarcada pela privatização dos direitos sociais e trabalhistas protagonizada tanto pela desregulamentação defensiva como pela ditadura do mercado.

Marcio Pochmann
Professor no Instituto de Economia e pesquisador no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.

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