Transformação de minha dor

Olhar a dor, reconhecer a dor, senti-la e permitir que faça seu caminho dentro de nós é uma arte a ser conquistada como caminho para a transformação. Em nosso processo evolutivo carregamos um padrão, na expressão de Simone Weil: “Fugimos da dor como animal acuado foge para o refúgio”. Um movimento dentro de nós, quase instintivo. 

Diante de algo que nos incomoda, podemos não dar atenção às emoções ou sentimentos que afloram em nós, ignorá-los ou reprimi-los. Consequentemente, ficamos na vitimização. A dor reprimida fica como energia dentro, que age contra nós mesmas ou contra outros. 

O estado de vitimização consome energia física, psíquica, mental e espiritual, a nossa vida. Podemos até nos resignar, racionalizar, dizer para nós mesmas “deixa pra lá” ou “estou por cima”. Mas a dor não curada atua como um véu através do qual avaliamos, de forma errada, a realidade que nos rodeia. No lugar de vitimização, mesmo que inconscientemente, projetamos para fora o que escondemos dentro; cristalizamos em nós o constante fluir da vida, estancando a fonte geradora de vida, em constante transformação. 

Mas podemos criar outro movimento dentro de nós. Podemos romper esse ciclo tão automático nos seres humanos, de sentir-nos seguras escondendo de nós mesmas a verdade e a dor, pela necessidade de aparecer bem, perfeitas, honradas, adequadas às expectativas de outras pessoas. 

Por trás de cada dor, de cada movimento de vitimização, esconde-se um pedido por dignidade e amor, necessidades profundas com frequência não atendidas e cuidadas, mas tão necessárias para nosso processo de transformação como seres humanos. A dor acolhida e transformada torna-se um tesouro que pede ser encontrado, caminho de aprendizado fecundo e vital para nos conduzir à essência do que somos.

Para a dor se deixar encontrar, como já viemos apontando neste percurso, precisamos cultivar uma mente atenta, capaz de atenção, e precisamos também do olhar amoroso: aquele de Cristo em nós. Compreender e amar o que somos nos humaniza, ficamos mais sábias, compassivas e compreensivas com as outras. A dor transformada deixa pegadas de mais liberdade e felicidade. Acolher a dor dessa forma, curar-nos e transformar-nos nela é o que chamamos perdão a nós mesmas e aos outros. 

Aliviadas do peso, perdoando-nos, podemos acompanhar a mudança/dança constante do acontecer da vida, em suas expressões. A vida é uma evolução constante que nos apresenta coisas diferentes. Descobrir-me constantemente é uma expressão viva da vida. Descobrir que o que me ameaça tem sua beleza. Nesse diferente do que me afastava, que me causava medo, que me deixava insegura, encontrando-me, encontro que, assim como eu, faz parte da multiplicidade infinita da vida que chamamos Deus. Cada diferença carrega um dom único e necessário para o todo; na infinita multiplicidade das coisas, a vida se expressa e flui em nós.

No mistério da vida que nos habita, podemos acolher amorosamente as manifestações que nos vitimam, entregar a dor que provocam em nós, libertar-nos do medo que nos paralisa diante do novo, do diferente, das situações de crise que ameaçam nossa segurança; perdoando e perdoando-nos, não desperdiçamos energia para segurar apegos a ideias, crenças, padrões familiares ou culturais. Assim, nossa energia fica livre para nos transformar, abertas a cada acontecer.

 

Transformar a dor coletiva

Conhecer o mundo para transformá-lo pede o exercício de conhecer a partir do coração, é um sentir pensando. Trata-se de nos aproximar da realidade de forma a nos comprometer com sua transformação, considerando as possibilidades concretas e as limitações. Também é importante ter a consciência de que a realidade é mais do que pensamos ou acreditamos conhecer sobre ela

Conhecer o mundo é um exercício dinâmico e constante, tanto em nível pessoal quanto coletivo. Desde que somos parte da Congregação, acompanhamos o constante mudar de concepções de missão; de nós como mulheres religiosas; da opção pelos pobres; da interculturalidade e questões étnicas; de justiça e paz; de integridade da Criação e ecologia integral, entre outras. 

Trata-se de concepções que foram aparecendo na sociedade e na Igreja, e que nos afetavam a cada tempo. Assim, esses temas ocupam espaço em nossos encontros e capítulos-gerais, e nos movem a desvendar realidades presentes no mundo, que desafiam nossa visão de missão e nossa maneira de presença nela.

Nós, como cristãs e membros da Congregação, experimentamos Cristo como a expressão da Fonte Divina em que a transformação do mundo acontece. Cristo é o Verbo Encarnado, pelo qual todas as coisas são criadas e em quem todas as coisas alcançarão sua plena transformação em Deus. 

A partir de nossa fé cristã, portanto, temos uma tarefa única no mundo: contribuir para a realização de Cristo, seguindo o exemplo de Jesus. Ser cristã é tornar Cristo vivo através de relações de amor, compaixão, justiça e diálogo com os diferentes. 

Somos criadas para levar Cristo dentro de nós e, assim, expressar a vida de Cristo no mundo. Isso envolve mergulhar neste mundo, conhecê-lo, envolvendo-nos com as realidades, com as criaturas da terra, com a própria terra. 

Podemos agora nos aproximar, mesmo que limitadamente, de algumas realidades que hoje nos interpelam e nos chamam a nos envolver, a sentir pensando-as, a conhecê-las em Cristo. 

O apelo que vivenciamos hoje com a ameaça da vida no planeta, o cuidado da Casa Comum está nos chamando de volta para o que somos e confrontando nossas concepções em relação à natureza. Precisamos compreender que tudo está interligado, que nós somos natureza. Não somos nem separadas, nem acima, como nossa visão distorcida, dualista e hierárquica nos faz acreditar. O sistema industrial e urbano reforça o uso da natureza como objeto de exploração; e não usa somente a árvore, o minério e a água, mas o próprio ser humano. Nós, os humanos, nos tornamos objetos adestrados desse sistema que parecia estar a serviço de mais qualidade de vida. Ao mesmo tempo, por meio de uma cultura competitiva, uma educação submissa ao sistema e um modo de consumo excessivo, exploramos cada vez mais o planeta e destruímos a Casa Comum.

Profundas reflexões de nossos capítulos, documentos da Igreja, movimentos da sociedade nos falam, com clareza e veemência, da necessidade de conversão. Desastres ambientais gritam e se aproximam cada vez mais de todos nós, em toda parte. 

Escutamos esse clamor? Decidimos transformar algo em nosso estilo de vida, em nossas concepções e nosso modo de vida em missão?

O tema da interculturalidade chegou até nós apenas nos últimos tempos. Apesar de acharmos justo e necessário, implica mudanças que necessitam ser trazidas à consideração, em vista da transformação. 

O encontro com outras culturas, dentro e fora da Congregação, é uma realidade. Desde sempre, existe uma diversidade étnico-cultural que, frequentemente, foi invisibilizada. As etnias indígenas e negras foram e são reprimidas e subjugadas pela cultura dominante europeia, da qual a vida religiosa faz parte. Apenas nas últimas décadas, foi possível dar nome às diferenças, e a cultura europeia ainda tem muita dificuldade de aceitar esses diferentes como legítimos e iguais filhos e filhas de Deus.

Como essa realidade chega até nós? Como nos transforma, gera Cristo em nós e nós o comunicamos ao mundo? Até onde conseguimos escutar os gritos de dor que vem de povos em situação de migração, com suas múltiplas causas; de povos que sofrem pelo racismo; de grupos minoritários discriminados pela cultura dominante?

Essa realidade clama por compaixão (“sofrer com”) e pede reconhecimento e acolhida de minha própria dor, para não controlar ou negar o que vem desse outro. O medo do desconhecido no outro também ameaça o desconhecido em mim. Os apegos a crenças e modos de vida que me dão segurança também precisam ser desafiados. 

Como dar lugar a esse novo que acontece no encontro entre diferentes, em condições de igualdade? O abrir-se ao desconhecido é um desafio, ao mesmo tempo em que gera possibilidades ricas e originais para a Igreja e a vida religiosa. A Ir. Adriana Milmanda, SSpS, vê nesse desafio a promessa de sermos anúncio de profecia para a paz no mundo de hoje.

Esse caminho contém um chamado a uma conversão para se colocar no lugar do outro; para afirmar o que une e para se enriquecer com os valores de cada cultura. Ao mesmo tempo, importa afirmar as diferenças, valorá-las e integrá-las, assim como confrontar e reconhecer as sombras presentes em cada cultura. Essa conversão também demanda a capacidade de desenvolver processos que ajudem a elaborar os conflitos decorrentes da confrontação com o diferente, considerando as dimensões fundamentais da vida e das relações.

“Quando os muros das próprias construções interiores desabam, porque expostos ao vento do diálogo, podemos ficar sepultados sob os destroços… mas podemos começar a construir a própria casa, de modo que outros possam entrar e sair”.1 Esse pensamento de Raimon Panikkar poderia expressar a experiência também de São José Freinademetz, de nossa Geração Fundacional, de tantas missionárias anônimas? Expressa para nós, hoje, algo da transformação a que somos chamadas?

Outra situação que está aflorando em nossa consciência e pede que seja transformada é a violência de gênero, que, ao longo de milênios, afunda suas raízes na história da humanidade. Frequentemente, quando a mídia nos relata notícias sobre assédio, feminicídio ou estupros, somos informadas sobre fatos que, na verdade, são sintomas de algo muito mais profundo, vemos a ponta do iceberg. Normalmente, não conseguimos ver em profundidade, porque nossa cultura esconde esse bloco de gelo, essa estrutura que sustenta relações de dominação, subordinação, exploração dos homens sobre as mulheres. Essa dominação generalizada e naturalizada grita para ser transformada. 

Enxergar essa situação como violência, tomar consciência da necessidade de transformação e, com pequenas atitudes provocar mudanças, saindo do lugar de subordinação, trará mais vida e dignidade para homens e mulheres, para a Igreja e a sociedade em geral. É mais uma dimensão a que somos convidadas a nos transformar em Cristo, em vista de construir relações libertadoras entre homens e mulheres.

 

Conclusão

O Mistério da Trindade, que ultimamente aprofundamos como “Dança da Trindade”, e no qual somos e habitamos, é a grande inspiração e convite para o processo de transformação a que somos chamadas. Esta vida em Deus Trindade nos move a dar passos para a transformação, mesmo que sejam passos frágeis, diante dos desafios de nosso tempo. Essa é a rota do seguimento de Jesus, para que a missão de Deus em nós seja viva e fecunda; para que avancemos para uma vida sustentável e responsável, através de relações vivificantes, recreativas e respeitosas com toda a Criação.

Este texto é uma reflexão sobre o que pode ser o processo de transformação como Congregação. Mas pode ser completado com a multiplicidade de experiências, contextos, culturas, presenças de vida em missão onde estamos. Em nossa região, costumamos dizer que “nossa cabeça pensa a partir do chão onde nossos pés pisam”. Desejo que esta contribuição possa despertar o melhor do que somos a caminho da transformação para onde o Espírito nos conduz. 

 

Algumas perguntas

Que experiências de transformação você já vivenciou em seu seguimento de Jesus Cristo?

Que processos de transformação de nossa Geração Fundacional podem inspirar mais hoje você? E a nós, como Congregação? 

A partir de sua caminhada na Congregação, no contexto e cultura onde você vive a missão, que movimentos de transformação sente que movem seus passos?

 

Nota

1 A. Rossi, un artista del dialogo. In: PANIKKAR, Raimon. L’altro come esperienza di rivelazione. Dialogo con Achille Rossi. Città di Castello: l’Altrapagina, 2008. p. 19.

 

Para saber mais

Parte 1: Transformação

Parte 2: Geração Fundacional como inspiração de transformação

Parte 3: Transformação a partir da interioridade

Parte 4: Transformação como encontro com minha verdade

2025 será o Ano da Transformação

 

Irmã Martina Maria Gonzáles García, SSpS 

Província Brasil Norte

 

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